O BRASIL E A SUA ELITE ESCRAVOCRATA
BRASIL É CONDENADO POR TOLERAR A ESCRAVIDÃO EM SUAS FORMAS MODERNAS
São Paulo, 18/09/2018 (Revisado em 16-03-2024)
Referências: Escravidão, semi-escravidão, Lei do Estagiário - Lei 11.788/2008, profissionais de nível superior e os estágio para aprendizado, trabalho sem Direitos Sociais - Artigo 6º da Constituição Federal de 1988, Reforma Trabalhista e Previdenciária, Indireto Retorno ao Regime Escravocrata, Lei da Terceirização - Lei 13.429/2017.
Veja também:
Veja os textos As Alianças Políticas e a Governabilidade e A Atuação da Multinacionais Mineradoras - Trabalho Escravo ou semiescravidão. Veja ainda outros textos sobre Reforma Trabalhista e os sobre Terceirização.
Coletânea por Américo G Parada Fº - Contador - Coordenador do COSIFE
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS DO COSIFE
Por Américo G Parada Fº - Contador - Coordenador do COSIFE
1.1. A LEGISLAÇÃO PROPOSTA PELOS INIMIGOS DOS TRABALHADORES
O Projeto de Lei 2.419/2007, transformado na Lei 11.788/2008, que dispõe sobre o estágio de estudantes, teve como autor o senador Osmar Dias do PDT do Estado do Paraná.
Porém, a proposição anterior foi feita mediante o Projeto de Lei 4.065/1993 (originário do Projeto de Lei do Senado 2/1992), firmado durante o Governo Itamar Franco pelo senador Marco Maciel do PFL do Estado de Pernambuco, atual DEM, que foi vice-presidente da República no Governo FHC. O projeto do citado senador propunha a alteração da Lei 6.494/1977 (do Governo Militar), que foi revogada pela presente Lei 11.788/2008.
A Lei 6.494/1977 versava sobre os estágios de estudantes de estabelecimento de ensino superior e ensino profissionalizante do 2º Grau e Supletivo. O detalhe importante é que atualmente, mesmo depois de formados, os estudantes de nível superior só conseguem empregos como estagiários ou como empresários (autônomos ou terceirizados).
1.2. A LEI DA TERCEIRIZAÇÃO INUTILIZANDO A CARTEIRA DE TRABALHO
Com o mesmo intuito de Não Gerar de Empregos ou de Gerar o Desemprego em Massa, para evitar o pagamento dos Direitos Sociais dos Trabalhadores (artigo 6º da Constituição Federal de 1988), foi sancionada a Lei da Terceirização (Lei 13.429/2017) no Governo Temer, que alterou dispositivos da Lei 6.019/1974 que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e ainda passou a discorrer sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.
Essa Lei do Governo Temer transformou-se num verdadeiro Cheque em Branco Fornecido ao Empresariado, conforme escreveu Enoque Ribeiro dos Santos, desembargador do Trabalho do TRT - 1ª Região. Mestre, Doutor e Livre Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP. O texto foi publicado na edição número 25 da Revista Fórum Trabalhista - RFT.
Aliás, na opinião do coordenador deste COSIFE, o referido desembargador parece ter deixado bem claro nas entrelinhas de seu importante texto que os inescrupulosos escravocratas podem fazer mau uso dessa extrema liberalidade.
1.3. A ARTIFICIAL GERAÇÃO DO DESEMPREGO EM MASSA
Em razão dos atos praticados por grandes empresários da indústria, que passaram a importar da China o que produziam no Brasil, isto com o intuito de causar enorme caos social à emergente classe média, forçando a inadimplência dos endividados, paulatinamente foi sendo gerado o Desemprego desde 2011 quando Dilma Russeff assumiu a Presidência da República. Assim, a redução da arrecadação tributária gerou as tais pedaladas fiscais que passaram a ser permitidas no Governo Temer.
1.4. A REDUÇÃO DO NÚMERO DE CONSUMIDORES E DA ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA
Devido à falta de consumidores causada pelo constante aumento do índice de desemprego, no Governo Temer agravou-se a já reduzida a Arrecadação Tributária. Então, sem essa necessária arrecadação, aconteceram os Défices Públicos (no Orçamento Nacional) que foram financiados com a emissão de Títulos Públicos - Títulos do Tesouro Nacional.
1.5. AS ALTAS TAXAS DE JUROS NAS OPERAÇÕES COMPROMISSADAS COM LASTRO EM TÍTULOS PÚBLICOS
Como os gestores das nossas Políticas Econômica e Monetária durante o Desgoverno Temer não conseguiram colocar esses títulos públicos no mercado à taxa de juros de 6,25% ao ano ou até os mais de 14% anteriormente vigente, o Banco Central do Brasil foi obrigado a colocar os referidos títulos lastreando Operações Compromissadas por Recompra a Curto Prazo. Entretanto, para conseguir os necessários investidores, tais gestores foram obrigados pelos profissionais do mercado a oferecer taxas de juros equivalentes às cobradas pelos bancos de seus infelizes correntistas tomadores de Empréstimos que são os chamados de Ativos das Instituições do Sistema Financeiro.
1.6. O GOVERNO TEMER SALVANDO DA FALÊNCIA OS BALUARTES DA INICIATIVA PRIVADA
Pois é, os baluartes, que se dizem os mantenedores do equilíbrio econômico e monetário nacional, foram os primeiros a falir diante do desemprego gerado pelos grandes empresários filados à CNI - Confederação Nacional da Indústria.
Por sua vez, os Banqueiros que financiaram as vendas ao consumidor (agora inadimplente) precisavam dessas altas taxas de juros pagas pelo Governo por intermédio das Operações Compromissadas (verdadeiro Desfalque no Tesouro Nacional) para que o dinheiro assim obtido fosse suficiente para tirá-los da falência causada pela inadimplência dos Desempregados.
1.7. DEFINIÇÃO DE ATIVOS DAS INSTITUIÇÕES DO SISTEMA FINANCEIRO
Então, para melhor entendimento, faz-se necessário explicar que esses Ativos das Instituições do Sistema Financeiro podem alcançar o montante de até 10 vezes o Patrimônio Líquido dos Bancos. Ou seja, para um patrimônio líquido de equivalente a 100 unidades monetárias (em qualquer moeda), os bancos podem emprestar até 1000 unidades monetárias, obviamente se conseguirem captar como depósitos à vista ou a prazo as 900 unidades faltantes.
Então, segundo a Revista Por Sinal, editada pelo SINAL - Sindicato dos Funcionários do Banco Central, o montante (total) da inadimplência teria chegado a 8% dos mencionados Ativos.
O que isto significa?
Significa que as instituições do sistema financeiro brasileiro perderam ou poderiam perder 80% do seu Patrimônio Líquido, o que resultaria na extrema insolvência ou falência de todas as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central. Isto seria o que eles costumam chamar de Risco Sistêmico, que se transforma numa imensa cadeia de falências. O nefasto resultado dessas falências encadeadas equivalente ao desastre acontecido com a queda daquele avião boliviano totalmente desgovernado em que viajavam os jogadores de futebol da Chapecoense. Talvez sobrassem para contar essa trágica história somente os bancos públicos, tal como aconteceu na Islândia.
Veja em A Lição Democrática da Islândia.
Ou seja, no exemplo numérico apresentado, o Patrimônio Líquido de 100 seria reduzido para 20. A diferença no valor de 80 unidades monetárias seria contabilizada como prejuízo corresponde a 8% de 1000 (total dos Ativos).
1.8. CORRELAÇÃO ENTRE DESEMPREGO, INADIMPLÊNCIA E TRABALHO ESCRAVO
Por que tais fatos foram aqui colocados?
Porque a partir da falência de todas instituições que servem de elo para essa importante corrente econômico-financeira, seria mais fácil para os empresários inescrupulosos a exploração do TRABALHO ESCRAVO daqueles desempregados que, para sua sobrevivência indigna, seriam obrigados a trabalhar em troca de um simples prato de comida por dia e um prato de sopa à noite.
Justamente pensando nesse infeliz futuro para os nossos filhos e netos, no Estado de São Paulo, os partidários do PSDB (que se revelou como mentor das privatizações ocorridas na década de 1990), querem ampliar a quantidade de restaurantes estatais (comunistas) que fornecem um prato de comida pelo preço de R$ 1,00 (um real) e que a partir de 2019 também vão ofertar o prato de sopa noturno, se forem eleitos.
Diante de todo esse nítido empobrecimento dos desempregados, muitas entidades não governamentais passaram a mostrar ou a demonstrar que durante o Desgoverno Temer, tal como aconteceu durante o regime militar iniciado em 1964, aumentou significativamente o número de camelôs e de pedintes nas ruas e avenidas das grandes cidades brasileiras. Aliás, depois da criação do Plano Real, na década de 1990 o desemprego no Brasil também bateu recordes.
Sobre os CAMELÔS, veja o texto denominado A Economia Informal e a Autorregulação dos Mercados - A Verdadeira Livre Iniciativa Acontece nos Camelódromos, publicado em 10/08/2010.
1.9. PARA QUE SERVE O CADASTRO DE INADIMPLENTES DO BANCO CENTRAL E DE OUTRAS ENTIDADES
Na realidade esses tipos de cadastro para nada servem porque os inadimplentes ficam indiretamente impedidos de trabalhar para que possam pagar suas dívidas. Assim sendo, os credores nunca verão novamente a cor do dinheiro perdido.
Na qualidade de inadimplentes, durante o Governo Temer, estavam registrados nos cadastros da inadimplência mais de 60 milhões de pessoas (30% da população total do Brasil), o que passou a gerar um caos total no sistema financeiro, razão pela qual o CMN - Conselho Monetário Nacional expediu a Resolução CMN 4.502/2016 em que, nas entrelinhas, seus membros prometeram não decretar a liquidação extrajudicial das mesmas, sabendo que a explosão desse tipo de RISCO SISTÊMICO (veja o item 5 no referido texto e seus desdobramentos) causaria a total falência do sistema financeiro brasileiro com sérias repercussões no sistema financeiro internacional administrado pelo FMI - Fundo Monetário Internacional, tal causou a falência dos Estados Unidos em 2008 e a da União Europeia em 2011.
Sobre o contido na mencionada Resolução CMN 4.502/2016, veja explicações no MNI 5-1 - Ação Fiscalizadora do Banco Central do Brasil.
1.10. OS PAÍSES DESENVOLVIDOS SÃO OS QUE ACUMULAM MAIOR DÍVIDA EXTERNA
Diante dessa verdade, é preciso deixar claro que todos aqueles países tidos como desenvolvidos, incluindo o Japão, são os maiores devedores, sem condições de recuperação porque todo o verdadeiro comando do sistema financeiro internacional está sob o controle das chamadas de multinacionais ou transnacionais que têm suas sedes em paraísos fiscais e operam no chamado de Shadow Banking System (Sistema Bancário Fantasma - O Lado Negro do Capital) totalmente fora do alcance dos Bancos Centrais de todos os países.
Na referida Resolução do CMN lê-se que ela estabelece os requisitos mínimos a serem observados na elaboração e na execução de planos de recuperação por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, com o objetivo de restabelecer os níveis adequados de capital e de liquidez e o objetivo de preservar a viabilidade operacional dessas instituições.
1.11. O GOVERNO TEMER SUSTENTANDO A ESNOBAÇÃO DOS BANQUEIROS FALIDOS
Ou seja, a partir do segundo dia como oficial governante, os assessores de Temer indiretamente declararam que estavam dispostos a sustentar o alto padrão de vida esnobado pelos banqueiros e pelos demais capitalistas.
Então, com o desespero espelhado em sua face, alguém perguntou: E o Povo?
O Povo que se dane!!! Queremos a revogação da Lei Áurea!!!
Assim sendo, todos os pobres estarão sujeitos à escravidão, obviamente porque todos os direitos são iguais, independentemente de raça ou cor da pele...
2. INTRODUÇÃO
Como introito da reportagem publicada, os editores da Revista "E" do SESC-SP escreveram:
O Brasil foi o primeiro país a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) - instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA) - por tolerar a escravidão em suas formas modernas.
A condenação aconteceu em 2016, quando o BRASIL foi responsabilizado internacionalmente por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. O Brasil também se mostrou líder na América Latina em número absoluto de pessoas em situação análoga à escravidão.
Segundo o relatório Índice Global de Escravidão 2018, publicado pela Fundação Walk Free, em julho de 2018, eram 369 mil pessoas nessa condição.
Sabendo que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão de africanos, os paralelos entre o presente e o século 19 são inevitáveis.
3. ÍNDICE DAS QUESTÕES FORMULADAS PELA REVISTA E DO SESC-SP
Texto sobre a pesquisa científica e edição de livro sobre Combate ao Trabalho Escravo, tendo como entrevistada a sua realizadora Beatriz Mamigonian.
As perguntas e resposta foram publicadas em 29/08/2018 pela Revista E do SESC-SP.
A entrevistada é doutora em História pela Universidade de Waterloo, no Canadá, e professora associada do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.
Com base no descoberto, a referida pesquisadora lançou o livro Africanos Livres (Editado por Companhia das Letras). A obra leva ao público dados pouco conhecidos sobre o processo de abolição do tráfico de escravos e sobre a escravização ilegal de pessoas no Brasil do século 19. A historiadora parte de fatos ocorridos na década de 1820 e avança até a campanha abolicionista na década de 1880, quando os mais radicais militantes contrários ao escravagismo questionavam o direito à propriedade sobre os africanos trazidos depois da proibição do tráfico e desafiavam o curso político do abolicionismo parlamentar.
Por sua vez, o coordenador deste COSIFE, Américo G Parada Fº, contador pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com base em publicações e na sua experiência profissional em empresas e no setor público na qualidade de auditor do Banco Central, mediante comentários e anotações nesta página, tenta mostrar que fatos semelhantes vêm acontecendo no Brasil nos dias de hoje, o que já foi demonstrado em vários textos publicados neste COSIFE enumerados no início desta página em VEJA TAMBÉM.
Então, os editores da Revista E, de conformidade com o publicado, formularam várias questões para serem respondidas pela historiadora Beatriz Mamigonian. Vejamos:
1. Quem eram os “africanos livres”?
Beatriz Mamigonian:
“Africanos livres” foi o nome dado, como uma categoria, a pessoas resgatadas do tráfico de africanos, mantidas num tipo de situação legal que não era propriamente escravidão, mas também não era liberdade como a gente imaginaria. Explico.
A Inglaterra foi a primeira a proibir o comércio de escravos, em 1807, e, a partir daquele momento, criou toda uma estrutura para apreender os navios negreiros que estivessem fazendo contrabando. Os africanos encontrados a bordo dos navios negreiros eram emancipados e obrigados a trabalhar como “APRENDIZES” por um certo número de anos.
Essa categoria depois aparece nos tratados que a Inglaterra assinou com Portugal, Espanha, Holanda e, depois, Brasil, quando começou a campanha internacional pela abolição do tráfico. Não interessava à Inglaterra que as outras potências coloniais tivessem acesso à mão de obra escravizada.
O primeiro tratado foi assinado com Portugal em 1810, e nele a coroa portuguesa se comprometia a restringir as áreas na África em que comercializava escravos e a colaborar para a abolição gradual desse comércio.
Outro tratado assinado em 1815 foi mais detalhado, teve uma convenção adicional em 1817, que estabeleceu direito de busca dos navios e o funcionamento de comissões mistas dos dois lados do Atlântico para julgar aqueles que fossem apreendidos.
Quando o navio era condenado, os homens, mulheres e crianças - havia muitas crianças - que estavam a bordo eram emancipados e viravam “africanos livres”. Se o julgamento fosse do lado africano, eles ficariam em Serra Leoa e, se fosse do lado das Américas, eles ficariam no lugar onde a comissão era sediada: Rio de Janeiro, Havana ou Paramaribo, no Suriname.
Serra Leoa recebeu mais de 90 mil africanos de todas as partes do continente. Em Cuba, foram emancipados cerca de 26 mil africanos, no Brasil foram 11 mil, e houve grupos menores em colônias britânicas no Caribe, na África e ainda em Angola.
Então essa categoria particular de pessoas resgatadas no tráfico, que existiu em vários territórios no Atlântico e no Índico no século 19, no Brasil foi chamada de “africanos livres”.
Américo G Parada Fº:
Sobre os citados "APRENDIZES" cabe salientar que os nossos estudantes e recém-formados de nível superior hoje em dia só conseguem empregos na qualidade de aprendizes, sem quaisquer direitos trabalhistas ou previdenciários.
Se forem considerados como aptos para a função exercida de forma experimental, geralmente a empresa oferece a continuação do exercício daquele trabalho na qualidade de microempresário ou de outro tipo de pessoa jurídica (terceirizada) que assim tire da empresa contratante a responsabilidade pelo pagamento dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e em legislação complementar.
2. Podemos afirmar que esses africanos viveram em liberdade?
Beatriz Mamigonian:
A situação deles variou muito. Dependia do lugar onde eram emancipados ou para onde foram realocados, se lá ainda havia escravidão ou não. O raciocínio dos abolicionistas britânicos, quando criaram esse estatuto, era de que os africanos resgatados do tráfico não estavam prontos para a liberdade.
No final do século 18 e começo do século 19, os abolicionistas brancos tratavam esses africanos como “crianças”. Por isso precisariam de 14 anos de “proteção”, e durante esse período eles prestariam serviços a particulares, supostamente para aprender ofícios.
Américo G Parada Fº:
Os estagiários mencionados na Lei 11.788/2008 e na antiga Lei 6.494/1977 continuam a ter praticamente o mesmo tratamento escravocrata que recebiam os "AFRICANOS LIVRES" que na verdade eram serviçais comuns e nunca verdadeiros aprendizes de ofícios.
A abolição se deu nas ruas e nas fazendas e depois ela acabou chegando ao Parlamento, já resolvida. Foi um movimento social impressionante
Beatriz Mamigonian:
O meu objeto de tese era o modo como funcionava esse “aprendizado” no Brasil. Demorei para entender que os portugueses nunca aplicaram esse conceito.
O alvará português de 1818 estabeleceu que os africanos e as africanas deveriam ser tratados como criados ou trabalhadores livres, ou então distribuídos para serviços públicos emancipados só depois de 14 anos de trabalho. Nesse alvará, os africanos receberam um tratamento muito próximo ao que os índios receberam: tutela com trabalho.
Então, o sistema de “aprendizado” não se aplicou aos africanos livres no Brasil - o trabalho deles não funcionou como preparação para que ganhassem autonomia.
Só entendi por que quando me dei conta de que esse tempo de serviço obrigatório durou, em geral, entre 20 e 30 anos em vez de 14.
Américo G Parada Fº:
Algo semelhante vem acontecendo nos dias de hoje. Muitos dos nossos novos aprendizes ou estagiários trocam de empresa a cada 6 meses e sempre são contratados na condição de "Estagiário" = "Aprendiz". Isto pode ser usado em prejuízo dos profissionais oriundos das classes sociais tidas como inferiores.
Os apadrinhados oriundos das classes sociais superiores sempre ficaram com os melhores empregos na iniciativa privada e no setor público imediatamente conseguem subir vários degraus na direção do topo da pirâmide hierárquica. Já os profissionais oriundos das classes sociais inferiores, mesmo que melhor qualificados, serão sempre os subalternos.
Beatriz Mamigonian:
Uma vez emancipado, o africano ou a africana ia para a Casa de Correção (no Rio) e, dali, o juiz de órfãos era o responsável por atribuir-lhes trabalho.
Dentre os que chegaram ao Brasil na década de 1830, um em cada cinco foi trabalhar em instituições públicas, como a própria Casa de Correção, que era uma prisão moderna, estava sendo construída; ou o Arsenal de Guerra; o Arsenal de Marinha; a Fábrica de Pólvora, que ficava no fundo da Baía de Guanabara, no distrito da Estrela. Os demais (80% do total) acabaram trabalhando para particulares.
No primeiro momento, houve uma arrematação dos serviços dos africanos: quem pagava mais, levava; mais tarde, reconhecendo abusos do sistema, adotou-se o sistema de concessão dos serviços dos africanos a pessoas reconhecidas como honestas. O temor era que eles fossem revendidos como escravos, então o Estado imperial manteve certo controle sobre eles.
Entre os concessionários de africanos livres estavam ministros, conselheiros de Estado, senadores, altos funcionários dos ministérios, e também gente simples, com relações no governo. Era um bom negócio ter um africano livre.
Os arrematantes/concessionários eram obrigados a recolher aos cofres públicos anualmente um salário; o valor desse salário correspondia ao que o africano ou africana conseguia arrecadar em um mês de trabalho. Esse salário nunca foi pago aos africanos.
Tratavam os escravos da mesma maneira como os fazendeiros tratam hoje da propriedade fundiária
5. Isso se relaciona ao que aconteceu nos anos seguintes a 1831?
Beatriz Mamigonian:
Em abril de 1831, Dom Pedro I foi expulso e abdicou. O governo da regência tentou se distanciar dos portugueses. Houve todo um esforço na estruturação do Estado Nacional.
A lei de abolição do tráfico, de 7 de novembro de 1831, veio nesse contexto, em que se buscavam mecanismos brasileiros para reprimir o tráfico, para tentar conter a ingerência dos ingleses. Mas em poucos anos ficou politicamente difícil aplicar a lei.
As plantações de café se expandiam, era um produto muito lucrativo, os fazendeiros insistiam muito em poder comprar africanos novos. Eles forçaram o governo a ceder e deixar de reprimir o tráfico.
Dessa forma, o governo brasileiro, que até 1834 estava com a Marinha no mar, apreendendo navios; que estava com juízes, apreendendo e emancipando africanos; com projetos na Câmara, como aquele que estabelecia uma matrícula para os escravos africanos, sofre uma guinada.
Houve uma articulação política liderada pelos representantes dos cafeicultores que travou as políticas de repressão ao contrabando.
O tráfico voltou a crescer: a estimativa é de que 800 mil pessoas tenham sido importadas ilegalmente entre 1831 e 1856, e sabemos que foram mantidas como escravas, mesmo que a lei de 1831 declarasse que todos os que entrassem a partir daquela data deveriam ser livres.
Os 11 mil africanos livres tiveram a liberdade cerceada pela existência desse imenso contrabando, que detinha o estatuto que devia ser estendido a todos os outros.
6. Quando a situação de trabalho forçado deles acabou?
Beatriz Mamigonian:
O governo imperial emitiu um primeiro decreto, em 1853, que só beneficiou os africanos livres que trabalhavam para particulares. Eles teriam que fazer um trâmite complicado: escrever uma petição e comprovar que estavam no livro de registro dos africanos recém-chegados.
Além disso, várias autoridades tinham que atestar as boas condutas. Ou seja, havia uma burocracia complexa e difícil de acompanhar, que favorecia apenas quem estava na cidade, sabia como funcionava ou tinha companheiros para ajudar.
Muitos africanos estavam nos arsenais e fábricas desde o início da década de 1830 e também tinham cumprido 14 anos, mas não obtiveram emancipação por esse decreto. Somente em 1864, o governo emitiu um segundo decreto e liberou os “africanos livres” definitivamente.
Na minha interpretação, foi para tentar encerrar a crise da Questão Christie com a Inglaterra e ainda para conter uma estratégia abolicionista de ampliar a definição de “africano livre” para incluir todos aqueles importados desde 1831 e mantidos em cativeiro ilegal. O governo começou uma varredura para saber quem eram os africanos livres, onde estavam, e emancipá-los, todos, para fechar essa questão.
Muito desse abolicionismo britânico serviu de discurso para rebaixar o Brasil à situação de pária das nações
7. Os ingleses estão longe de ser super-heróis na abolição da escravidão no Brasil?
Beatriz Mamigonian:
Eu não queria deixar a imagem de que os ingleses eram super-heróis porque, nesse mesmo capítulo em que discuti as ações dos ingleses, mostrei que desde 1840, assim que a escravidão foi abolida nas colônias britânicas, os ingleses precisavam muito de mão de obra.
E eles acabaram se favorecendo, utilizando esse sistema de repressão do tráfico para canalizar os africanos dos navios negreiros apreendidos e direcionando-os para suas próprias colônias. Para plantações de açúcar, como em Trinidad e Jamaica.
Consegui levantar um número talvez conservador, de 2.500 pessoas que teriam sido escravizadas no Brasil, mas que foram levadas para as colônias britânicas num regime que não era escravidão, mas era de contrato.
Na prática, as condições de trabalho eram próximas da escravidão, mas os trabalhadores eram nominalmente livres, o que livrava a barra dos ingleses. O fato é que os ingleses se achavam moralmente superiores porque acabaram com a escravidão e condenavam muito o Brasil.
8. O que lhe chamou mais a atenção como historiadora ao se dar conta desses dados?
Beatriz Mamigonian:
A questão que me coloquei foi a seguinte: como foi possível no debate político silenciar sobre o direito à liberdade dos africanos trazidos depois de 1831, sabendo da exploração dessas pessoas, e tratar como se isso fosse a coisa mais normal do mundo?
Como foi possível, para os contemporâneos, naturalizar essa escravidão?
Esses africanos foram tidos como propriedade, só que era adquirida ilegalmente.
Na época da discussão da Lei do Ventre Livre, um grupo muito grande no Parlamento se recusava a aceitar a libertação dos recém-nascidos sem que os senhores, donos das mães, fossem indenizados.
Mais adiante, nas discussões sobre emancipação, os senhores de escravos falavam da propriedade sobre os escravos como se ela fosse absolutamente legal.
Beatriz Mamigonian:
Sim. Não que a ilegalidade ou o contrabando fossem novos, porque a corrupção e o contrabando são práticas que já eram recorrentes no período colonial.
Mas, se a gente pensar pelo ponto de vista do Estado nacional, é impactante pensar que ele, ao se estruturar, acabou em pouco tempo sendo dominado por senhores vinculados a traficantes, que impuseram ao governo uma agenda de exploração do trabalho de pessoas.
E ainda cabe observar que essa agenda sobreviveu até a abolição.
A desumanização que a sociedade impõe às pessoas mais pobres, majoritariamente negras, é um legado da escravidão
10. Como acontece a abolição de fato?
Beatriz Mamigonian:
A abolição, quando foi assinada no dia 13 de maio de 1888, estava ratificando um fato já consumado. Uma grande massa dos escravos engajados na cafeicultura estava fugindo das fazendas. E os senhores já não tinham mais como controlar essa situação.
O movimento abolicionista foi crescendo ao longo da década de 1880, criando uma opinião pública favorável à abolição da escravidão. Então, a abolição se deu nas ruas e nas fazendas e depois ela acabou chegando ao Parlamento, já resolvida. Foi um movimento social impressionante, muito poderoso.
Beatriz Mamigonian:
É evidente que mesmo com uma economia e uma sociedade muito mais complexas do que no século 19, 130 anos depois da abolição, o Brasil mantém em funcionamento mecanismos poderosos de concentração de renda.
Mas isso se deve ao lugar do país no mundo, é geopolítica. Precisaria haver um entendimento e um esforço coletivos para mudar essa realidade.
Internamente, temos vários entraves. Assim como no século 19, há uma mobilidade social ascendente, mas ela é pontual, muito seletiva, e não desafia essa concentração de renda brutal. No século 19, os libertos queriam autonomia, isto é, trabalhar para si e sua família, na cidade ou na roça. Esse era o significado da liberdade.
Lutavam também por cidadania plena, sem discriminação de cor. Essas eram as mesmas demandas da população de origem africana em outras partes das Américas.
A história do século 20 foi, para os afrodescendentes, a da continuação dessa luta, com muitos reveses (expulsão das terras, assassinato de lideranças) e algumas conquistas (direitos civis, titulação dos quilombos, ações afirmativas).
Mas a violência persiste, é uma constante. A desumanização que a sociedade impõe às pessoas mais pobres, majoritariamente negras, é um legado da escravidão.
Enquanto as demandas coletivas por acesso à terra e à moradia, remuneração justa e condições humanas de trabalho e inclusão social não forem consideradas prioritárias, não teremos confrontado nossa dívida coletiva com os milhões de índios que foram expulsos de suas terras e africanos que para cá foram trazidos involuntariamente.