REVISTA POR SINAL #56 - SEM FANTASIA
REPRESENTANTES SINDICAIS COLOCAM A BOCA NO TROMBONE
São Paulo, 30/03/2018 (Revisada em 20/02/2024)
2. CORRUPÇÃO - UM SISTEMA FINANCEIRO PARALELO
DENUNCIADAS NAS INVESTIGAÇÕES DA LAVA-JATO, TRANSPORTADORAS DE VALORES “ARMAZENAM” EM SUAS PRÓPRIAS BASES DINHEIRO CUSTODIADO PELOS BANCOS
Por VERÔNICA COUTO para a Revista Por Sinal #56 - FEV /2018 editada pelo SINAL - Sindicato dos Funcionários do Banco Central.
Hoje, quando chega na transportadora, o malote [de dinheiro] é aberto e o numerário é processado ali mesmo: o dinheiro, que vem cintado, sai para bancos, lojas ou outros destinos. Há uma quebra de contabilização nesse momento, com risco de o dinheiro ser usado para fazer alavancagem ou lavagem. Palavras de GUSTAVO TABATINGA JR. - SECRETÁRIO DE POLÍTICAS SINDICAIS DA CONTRAF-CUT
São cerca de R$ 20 bilhões em dinheiro vivo circulando diariamente pelas ruas e estradas do país, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Transporte de Valores (ABTV). É muito dinheiro em trânsito, para pouca fiscalização, alertam especialistas que registram como corriqueira a prática de algumas empresas “armazenarem” os valores em suas próprias bases, antes de entregá-los ao seu destino.
Essa custódia aumenta o risco de captura da atividade [de transporte de valores] para [ser utilizada na] lavagem de dinheiro [obtido na ilegalidade], concessão de empréstimos informais, formação de Caixa 2, pagamento de propinas, envio de recursos para o exterior [fraudes cambiais e evasão de divisas - Reservas Monetárias], entre outras irregularidades. [Trata-se evidentemente de] um verdadeiro sistema financeiro paralelo, que funciona fora do alcance dos sistemas de controle aplicados à movimentação bancária.
Empresas de transporte de valores (ETV) foram o canal, por exemplo, para movimentar os recursos destinados à corrupção de políticos do Rio de Janeiro, denunciados ... pelo Ministério Público.
Em apenas uma das operações da Polícia Federal envolvendo o ex-governador Sérgio Cabral, descobriu-se que, entre 2013 e 2015, a transportadora Trans-Expert teria depositado na conta bancária da “Creações Opção” mais de R$ 25 milhões em espécie [moeda corrente] - o [Ministério Público] acredita que seriam repassados a uma empresa de Cabral.
Veja informações complementares em G1 - Jornal Nacional.
A custódia de dinheiro é uma função exclusiva de instituições financeiras, de acordo com a Lei do Sistema Financeiro Nacional (Lei 4.595/1964). Mas está para ser autorizada às ETV no novo Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras (Substitutivo da Câmara nº 06/2016 ao PLS 135/2010), pronto para ser votado no Senado.
“As transportadoras não são devidamente fiscalizadas”, adverte o diretor de Estudos Técnicos do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), Daro Piffer. [E continua:] “Essas empresas pegam o dinheiro no banco para distribuí-lo - entre bancos diferentes ou entre agências - e, muitas vezes, não conseguem entregar os valores durante o dia. Aquele montante ‘dorme’ na transportadora, e pode acontecer de uma parte ser emprestada para alguém ou desviada de seu destino original”.
A situação descrita por Piffer não é uma excepcionalidade. “Grande parte do dinheiro que os bancos custodiam não está nas suas agências; fica guardada na base operacional das empresas transportadoras”, afirma Gustavo Machado Tabatinga Jr., secretário de Políticas Sindicais da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ramo Financeiro (Contraf-CUT).
Por questão de segurança ou para atender a necessidades contábeis, o que tem acontecido de forma corriqueira e trivial é que os bancos preferem remeter o dinheiro para as ETV. Praticamente todos os grandes e médios conglomerados financeiros terceirizam suas tesourarias, com exceção do Banco do Brasil, contratado pelo Banco Central para distribuir a moeda aos bancos em todo o território nacional. Ou seja, praticamente todo o dinheiro que deveria ser depositado nas instituições financeiras (IF) é recolhido diariamente aos cofres das empresas transportadoras de valores, que, no processo regular, informam esses valores às áreas de controle da cada uma das IF.
“Quando se vê um carro-forte recolher dinheiro nas lojas dos supermercados, nos shoppings, significa que esse carro-forte está trabalhando para várias instituições financeiras. Isso porque o mercado de transporte de valores é significantemente restrito a umas poucas empresas”, explica Wagner Carvalho, conselheiro do Sinal, que atua no Departamento de Meio Circulante (Mecir) do BC.
Ele chama a atenção para o fato de que existem duas situações de terceirização. “O Banco Central terceirizou parte de sua tesouraria, tendo como parceira uma instituição financeira, o Banco do Brasil. E as IF terceirizaram as atividades de controle e guarda de estoque de dinheiro pela contratação de empresas de transporte de valores (ETV)”.
Mais grave ainda, as empresas de transporte estariam não só armazenando, mas também manipulando e processando os recursos financeiros, atuando praticamente como correspondentes bancários. “Os malotes de dinheiro são abertos nos QG [quartéis-generais] das transportadoras, e aí perde-se o controle sobre eles”, diz o dirigente da Contraf-CUT.
E, continuando, explica:
Imagine-se, por exemplo, o seguinte cenário: uma ETV recolhe no fim do dia o dinheiro faturado por uma farmácia, mas, em vez de levá-lo diretamente a uma agência bancária, processa-o na sua própria sede, de forma terceirizada, para o banco.
Isso significa, explica Tabatinga Jr., abrir os malotes, manipular as notas ou moedas, eventualmente substituí-las.
Quando esse dinheiro finalmente chegar à agência, não há como garantir que sua totalidade venha, de fato, daquela farmácia, e não de uma operação ilegal, como tráfico de drogas ou jogo do bicho.
Da mesma forma, se esse dinheiro tiver origem em um banco, não se pode assegurar que não vá abastecer o crime durante o período de custódia, enquanto, em tese, deveria estar guardado nos cofres.
Isto significa dizer que as transportadoras de valores vêm atuando não exatamente como correspondentes bancários, mas, sim, como instituições financeiras fantasmas, a exemplo de como operam os Bancos Offshore constituídos em Paraísos Fiscais, os quais atuam no Shadow Banking System (Sistema Bancário Sombrio ou Fantasma).
O PASSEIO DO DINHEIRO
Veja também Rastreamento do Fluxo Monetário cujo teor era distribuído e explicado em cursos ministrados na ESAF - Escola de Administração Fazendária de 1984 a 1998.
A custódia e o processamento de dinheiro em bases de transportadoras começaram como um expediente para driblar situações nas quais “a agência bancária estava ‘entupida de dinheiro’, e não conseguia repassá-lo a tempo ao Banco do Brasil, para ser enviado ao Banco Central”, conta o dirigente da Contraf-CUT.
Os valores seguiam então para a transportadora, permitindo acertar a contabilidade diária do banco. O malote, contudo, ainda permanecia fechado para entrega no dia seguinte nos bancos oficiais, que faziam seu processamento, autenticando e contabilizando o recurso no caixa da instituição financeira.
“Agora, quando chega na transportadora, o malote é aberto e o numerário é processado ali mesmo: o dinheiro, que vem cintado, sai para bancos, lojas ou outros destinos. Há uma quebra de contabilização nesse momento, com risco de o dinheiro ser usado para fazer alavancagem ou lavagem”.
Em outro tipo de operação, o mesmo dinheiro pode ficar rodando de carro-forte para atender a diferentes clientes. Um supermercado recebe Caixa 2, ou dinheiro não contabilizado de uma empresa. A transportadora o recolhe, paga funcionários, fornecedores, o que o cliente quiser, ou o empresta para uma construtora, que quita o financiamento em prazo de um mês, quando o valor é então devolvido ao supermercado, que ganha com a sonegação sobre esta receita, disponível também para pagamento de propinas.
Desse modo, os recursos circulam por fora do sistema financeiro e à margem dos seus instrumentos de controle, abrigados nas bases móveis das transportadoras. “Desde os atentados de 11 de setembro, em 2001, há uma orientação global para aumentar o rigor no rastreamento de movimentações financeiras”, diz Nehemias Monteiro Jr., servidor do BC e conselheiro do Sinal. O aperto na vigilância do sistema explicaria, em parte, a emergência das transportadoras de valores como canal alternativo para a circulação de dinheiro. “Justamente por isso é que [o crime] tem buscado outros meios, com a migração para atividades menos reguladas, como o comércio de joias ou atividades em que a movimentação de dinheiro em espécie, em grandes quantidades, é o usual e não levanta tanta suspeita”.
O único documento para fiscalização desses valores em trânsito é uma guia de transporte, diz Tabatinga Jr. Para ele, seria preciso determinar um prazo máximo entre o recolhimento do dinheiro e sua contabilização no banco, haver um lançamento formal em caixa da custódia feita na transportadora e a criação de novos controles escriturais.
O diretor do Sinal, Daro Piffer, é da mesma opinião. “Seria preciso instituir um controle escritural, de processo, verificar se o dinheiro transportado confere com a contabilidade das empresas. E isso não é feito”.
NOTA DO COSIFE:
Nos anos de 1976 e 1977, quando entraram em ação os Auditores do Banco Central (contadores) contratados mediante concurso público realizado em 1976, os balancetes e balanços de muitas instituições apresentavam altíssimos valores em CAIXA e pouco dinheiro depositado em bancos.
Os contadores foram contratados porque as antigas "inspeções" quase nada apuravam. Muitos dos Inspetores nem curso superior tinham. Tiveram o Banco do Brasil ou o Banco Central como primeiro emprego na condição de "escriturário", sem nenhum treinamento de nível mais elevado. Por isso a Fiscalização era Ineficiente. Desde o final da década de 1980 não mais existiram concursos públicos para a admissão de contadores (auditores e peritos contábeis).
Nas primeiras fiscalizações ou investigações (perícias extrajudiciais) efetuadas pelos Auditores do Banco Central a partir de 1977, depois de efetuados Termos de Apuração de Caixa em várias instituições, verificaram os auditores que quase nenhum dinheiro existia em CAIXA. Na verdade existiam documentos como, por exemplo, vales, notas promissória e títulos de crédito representativos de operações de agiotagem e valores em moedas estrangeiras.
Esse tipo de controle do Caixa Dois das empresas de modo geral podia ser feito mediante aplicações financeiras ao portador até quando foi sancionada a Lei 8.021/1990 no Governo Collor, que proibiu a realização de operações não identificadas. No Governo Sarney foi até legalizado o Fundo de Investimentos ao Portador para abrigar o dinheiro que circulava no Caixa Dois (economia informal).
Um pouco antes, no final do ano de 1988 o presidente do Banco Central (Elmo Camões) criou o Mercado de Câmbio de Taxas Flutuantes para dar legalidade às operações dos cambistas, doleiros e agiotas. Foi o que escreveram em 1993 os prepostos do Banco Central na cartilha denominada O Regime Cambial Brasileiro, cujo teor e comentários ainda estão publicados neste COSIFE como parte da história do nebuloso sistema financeiro brasileiro e internacional.
Muitas dessas operações foram chamadas de ESQUENTA / FRIA porque empresas tinham prejuízos em operações realizadas no Mercado de Capitais e, em contrapartida, pessoas físicas tinham lucros para dar legalidade ao dinheiro oriundo de operações clandestinas (inclusive a corrupção). Até a promulgação da Lei 8.014/1990, os ganhos no mercado de ações não eram tributados, e até 1989 os rendimentos de todas as demais operações nas Bolsas de Valores também não eram tributadas.
Em razão dessa nova tributação, as transações paralelas passaram a ser feitas no Mercado de Câmbio de Taxas Flutuantes, por intermédio das contas bancárias de "não residentes", chamadas de "CC5" (Carta Circular BCB 005/1969). Então, os doleiros, cambistas e agiotas passaram a constituir instituições financeiras em paraísos fiscais para que no Brasil pudessem movimentar as contas bancárias de 'não residentes", imediatamente legalizadas pelo Banco Central por meio da Carta Circular BCB 2.259/1992. Para evitar essa transações paralelas, em 2005, durante o Governo Lula, foi extinto o Mercado de Câmbio de Taxas Flutuantes. Isto provocou a ira de seus adversários políticos. Muitos desses ainda não foram incriminados pela Operação Lava-Jato.
Portanto, os relatos feitos pelos sindicalistas do SINAL, e de outras entidades, por intermédio da Revista Por Sinal #56 de fevereiro de 2018, nada mais são do que o prolongamento da ocorrência de atos e fatos que são praticados desde que a Resolução CMN 366/1976 regulamentou as operações compromissadas (MNI 2-14) que nem precisavam ter lastro porque ainda não existiam o SELIC nem a CETIP. Esses sistemas de liquidação e custódia foram instituídos justamente para evitar as fraudes como as agora mencionadas pela Revista Por Sinal. A legalização da existência desses sistemas de liquidação financeira só ocorreu com a Lei 10.214/2001.
A Comissão Consultiva para Assuntos de Segurança Privada, criada pela Lei 7.102/1983, já colocou o problema na pauta e pretende fazer um estudo detalhado dos riscos do transporte de valores. A Comissão tem a participação da Contraf-CUT, de entidades representativas de bancários, vigilantes, empresas de segurança, bancos, Polícia Federal e Superintendência de Seguros Privados (Susep). O Banco Central também a integra, mas, segundo o secretário de Políticas Sindicais da Contraf-CUT, embora solicitado, não tem participado das reuniões.
QUEM FISCALIZA?
O Banco Central não fiscaliza as transportadoras de valores porque elas não são instituições financeiras, no sentido formal. Tecnicamente, são supervisionadas pelo Ministério da Justiça, que delegou à Polícia Federal o acompanhamento das empresas do setor. Mas o foco de atenção da PF está na segurança física do serviço - alvo frequente de assaltos -, na legalidade do armamento, no pessoal de vigilância.
Para Piffer, a falta de supervisão especializada para as movimentações de dinheiro representa uma fragilidade no sistema, que pode ser aproveitada para desvios.
Uma das poucas formas de detectar irregularidades, ainda na ponta financeira das operações, são as comunicações ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), entidade vinculada ao Ministério da Fazenda (criada pela Lei 9.613/1998), que centraliza informações sobre combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo (ver a matéria O CAMINHO DAS FRAUDES).
Os correntistas devem comunicar aos bancos, com três dias de antecedência, saques e outras operações em dinheiro a partir de R$ 50 mil. E os bancos, notificá-los ao COAF, que avalia se estão fora do padrão e merecem uma investigação.
No caso dos recursos desviados pelo governo do estado do Rio, o COAF conseguiu detectar pelo menos uma operação suspeita. Em decisão proferida a 9 de novembro de 2016, quando determina a prisão do ex-governador Sérgio Cabral, entre outros, o juiz Marcelo Bretas pede esclarecimentos acerca do Relatório de Inteligência Financeira nº 24.093 do COAF, que não pode ser encontrado na Internet mediante pesquisa feita pelo GOOGLE. Nítida desobediência à Lei da Transparência. O citado “relata ocorrência de possível atividade criminosa na série de depósitos em dinheiro que a empresa Trans-Expert Vigilância e Transporte de Valores Ltda fez, entre 2013 e 2015, na conta bancária de certa empresa, Creações Opção, de mais de R$ 25 milhões em dinheiro, fato que já é objeto de procedimento judicial (Operação Farejador)”.
A partir dessa empresa, a tese do MP é de que os recursos fossem repassados à Objetiva Gestão e Comunicação Estratégica, do próprio Cabral.
“A movimentação de recursos via sistema financeiro, principalmente bancos, envolve registros como TEDs, DOCs, contratos de câmbio, comprovantes de transferências, sinalizações ativadas por valores, formas de movimentação, partes envolvidas, diferentes instrumentos”, explica Nehemias.
As instituições são obrigadas a manter cadastros e a correlacionar movimentações com a renda e o faturamento dos clientes. A Carta Circular BCB 3.542/2012 lista inúmeras situações que podem ser indícios de lavagem de dinheiro, que, uma vez detectadas, precisam ser notificadas ao COAF, sem o conhecimento do cliente. O COAF, por sua vez, cruza as comunicações e as envia para o MPF e a Polícia Federal.
No “mensalão”, por exemplo, ele lembra que os recebimentos em dinheiro vivo foram registrados pela agência que fez os pagamentos, o que facilitou seu rastreamento.
Pergunta-se: Por que não fez com as demais transações com suspeita de serem irregulares?
Nesse sentido, o conselheiro do Sinal considera que houve um aperfeiçoamento no trabalho do BC e do COAF nos últimos anos, com destaque para a criação do Departamento de Supervisão de Conduta (Decon), que estendeu a atenção do BC para além da saúde financeira dos bancos.
“Em 2012, adotaram um tipo de fiscalização chamada ‘twinpeaks’, por ter dois focos: de um lado, na solidez do sistema; de outro, na sua conduta, analisando se há lavagem de dinheiro, utilização para fins de terrorismo, etc”.
FORA DE CONTROLE
O problema é quando nada disso passa pelo banco. Ou se passa, passa pelas sombras. Foi o que aconteceu na quadrilha formada por parlamentares e empresários de ônibus no Rio.
Uma petição do MPF, de 28 de junho de 2017, relativa à Operação Ponto Final (que investigou as empresas de ônibus do Rio), aponta a existência de “veementes indícios” de que os proprietários das transportadoras de valores Trans-Expert e da Transegur “ocultaram milionária quantia arrecadada para a caixinha da propina da Fetranspor, pelo menos entre os anos de 2010 e 2016, em valores de cerca de R$ 260 milhões, operando como agentes financeiros para a guarda e distribuição segura das vantagens indevidas distribuídas a mando dos empresários de transporte público, sem qualquer comunicação dessas operações suspeitas ao COAF”.
As medidas do BC e do COAF para acompanhamento dos bancos impõem algum controle às transações, mas não impedem que gerentes mancomunados com clientes ou a cumplicidade das próprias instituições financeiras permitam às operações passarem sem as devidas notificações. É quando o dinheiro processado fora do sistema, por exemplo, nas transportadoras, consegue ingressar no mundo da legalidade, apagando os rastros dos atalhos suspeitos por onde andou.
Segundo Wagner Carvalho, “os valores que têm sido retidos pelas operações realizadas pela Polícia Federal, além da saída de grandes valores do país, encontrados em contas nos chamados ‘paraísos fiscais’, parecem indicar que as determinações não vêm sendo cumpridas, seja por bancos, por empresas, e por particulares, que transacionam grandes somas em dinheiro em espécie, nacional ou estrangeiro”.
Vários alertas desenvolvidos no Banco Central podem indicar sinais de operações estranhas a partir do batimento das informações contábeis dos bancos. Mas a instituição tem poder apenas para multar, punir administrativamente e pedir a correção do processo - a investigação criminal será feita somente pela PF. As fiscalizações in loco a cargo dos funcionários do BC, por sua vez, são realizadas em geral de forma programada e sobre objetos predefinidos. Dificilmente conseguem ir além do escopo original, na hipótese de se identificar algum desvio inesperado. É necessário abrir uma nova fiscalização, num processo geralmente pouco ágil.
OS DESCAMINHOS DA FETRANSPOR
Num desses descaminhos dos caminhões de dinheiro que passeiam pelo país, descobriu-se que milhões de reais teriam saído das garagens de grandes empresários de ônibus do Rio de Janeiro, ligados à Federação de Transporte Coletivo (Fetranspor), para o bolso de deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
A descoberta faz parte das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal nas Operações Ponto Final (deflagrada em 03/07/2017) e Cadeia Velha (14/11/2017). As mesmas transportadoras - Transegur e Trans-Expert - citadas nessas operações teriam servido como canais de escape para os recursos não contabilizados que o governo Sérgio Cabral desviou dos orçamentos de grandes obras no Estado.
Tudo começa quando uma empresa privada ou mesmo um setor inteiro quer comprar um privilégio do poder público, dispostos a pagar bem por isso.
Como fazer o dinheiro sair da atividade produtiva, a receita da empresa, e chegar ao agente do Estado?
Em delação homologada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e divulgada em julho de 2017, o doleiro Álvaro José Novis afirmou ter sido encarregado pela direção da Fetranspor de distribuir o dinheiro aos políticos, em troca de benefícios fiscais, tarifários, acertos sobre linhas de ônibus, entre outros favores feitos pelo poder público aos empresários de ônibus, que, em cinco anos, teriam provocado perdas de R$ 183 bilhões em tributos ao Estado.
Entre outros meios, o delator diz ter recorrido à Transegur (adquirida depois pela Prosegur) e à Trans-Expert para coletar o dinheiro ganho com as passagens dos ônibus das empresas associadas à entidade, levá-lo para as bases das transportadoras de valores e, de lá, repassar os totais combinados aos parlamentares.
Novis contou que o dinheiro era recolhido pela Transegur nas garagens dos ônibus, custodiado na sede da mesma ETV ou na da Trans-Expert, e enviado aos políticos mediante ordens de pagamento, que eram, na verdade, bilhetes de papel em que se lia o codinome dos beneficiários. Mesmo quando a entrega não era feita pela Transegur, era ela que transferia os valores dos ônibus para a empresa do doleiro (a Hoya Corretora de Valores e Câmbio), encarregado então o próprio delator de fazê-los chegar aos deputados “comprados”.
“As empresas de ônibus possuíam ‘contas’ nas transportadoras de valores para custódia dos recursos arrecadados com passagens”, descreve o doleiro, conforme transcrição que consta de uma petição à Justiça Federal do Rio, assinada pelo Ministério Público Federal, de 28 de junho de 2017. O próprio Novis teria aberto essas “contas” informais para poder movimentar o dinheiro, a pedido da Fetranspor. Os valores eram transferidos das “contas” das empresas para a sua “conta”, e a partir daí encaminhados os pagamentos dos políticos.
Os recolhimentos aconteciam semanalmente nas garagens dos ônibus e eram controlados em planilhas de débito e crédito com fechamento mensal, onde ficavam registradas as contribuições das várias associadas da Fetranspor ligadas ao esquema, e as caixinhas semanais dos políticos, com os respectivos saldos.
O esquema funcionou de 1990/1991 até 2016, quando os pagamentos teriam sido suspensos devido à Operação Xepa da Força-Tarefa, desdobramento da Lava-Jato.
A Polícia Federal já realizou, nos últimos anos, investigações específicas no setor de empresas transportadoras de valores (ETV). Na Operação Grande Truque, em outubro de 2015, um dos alvos foi a filial pernambucana da Brinks, uma das gigantes do setor, com sede nos EUA, que, caso raro, também possui autorização para funcionar como correspondente bancário. Na ocasião, o gerente da empresa em Recife foi preso e a empresa, processada, por ter ido além de seus limites legais, promovendo operações de câmbio nas suas dependências a pedido de instituições financeiras. Mas decisões posteriores da Justiça suspenderam as ações.
Até motoboys já foram usados para transporte de valores. Em março de 2015, de acordo com o site da Contraf-CUT, o Itaú foi multado em R$ 2,74 milhões, em 12 processos, por transportar valores acima de 7 mil UFIR para clientes em São Paulo, por meio da empresa Protege, que utilizou motoboys, quando precisaria ter feito a operação com veículo tradicional e presença de dois vigilantes, conforme determina a Lei nº 7.102/83. O banco teria reconhecido que emitia ordens de serviço para a Protege, quando era necessário levar numerário a um cliente.
POLÊMICA SOBRE NOVO ESTATUTO
O Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras (Substitutivo da Câmara nº 06/2016 ao PLS 135/2010) está pronto para ser votado no Senado, alterando, entre outras, as regras para transporte de valores. De acordo com o texto, as empresas transportadoras de valores (ETV) passarão a poder “realizar a armazenagem, a custódia e o processamento do numerário e dos valores a serem transportados”, oficializando o que já estariam fazendo de forma informal. A mudança está no artigo sexto, parágrafo segundo, inciso terceiro, do Substitutivo.
Segundo o secretário de Políticas Sindicais da ContrafCUT, Gustavo Tabatinga Jr., há ressalvas em relação à mudança, porque ela deveria vir acompanhada de sistemáticas mais consistentes de fiscalização do setor. Mesmo assim, ele acredita que a institucionalização da prática poderá, no futuro, permitir a criação de normativos e regulamentações específicas pela Polícia Federal, que aumentem os controles sobre a operação.
JOGO DE INTERESSES
A maior polêmica na tramitação do projeto, contudo, não foi a possibilidade de custódia de valores nas bases de transporte. A controvérsia ficou por conta do trecho que tentava impedir a prestação de serviços para terceiros de empresas controladas por bancos e instituições financeiras, o que poderia tirar do mercado a TB Forte, transportadora criada há dez anos pelo grupo TecBan - da rede Banco 24 Horas -, controlado por Bradesco, Itaú, Santander, Citibank, Caixa e Banco do Brasil.
Atualmente, o transporte de valores para suprimento ou recolhimento diário dos estabelecimentos financeiros está previsto na Lei 7.102/1983, que exige sua realização com veículo especial da própria instituição ou de empresa especializada - as ETV. Essas empresas controlam 4.500 veículos, cujo total de dinheiro transportado por ano pode chegar a R$ 7,3 trilhões, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Transporte de Valores (ABTV).
Como todo esse numerário tem sempre na origem ou no destino uma instituição financeira, tanto elas quanto os bancos devem informar ao COAF qualquer transporte suspeito. De acordo com nota enviada pela assessoria da entidade, as maiores instituições financeiras brasileiras, via Febraban, contratam os serviços das empresas associadas e realizam periodicamente auditorias na prestação do serviço. Também as próprias ETV são obrigadas pela Polícia Federal (artigo 58 da Portaria 3.233/2012-DG/DPF) a realizar auditorias internas para controle e checagem da operação com os valores.
Atualmente, a ABTV e a Federação Nacional das Empresas de Transporte de Valores (Fenaval) reúnem as 11 principais empresas do mercado, responsáveis por 90% da operação do país, de um universo de 30 companhias de transporte de valores registradas junto à Polícia Federal. Juntas, são responsáveis pela movimentação da grande maioria de todo o dinheiro circulante no país, além de abastecer 100% dos mais de 160 mil caixas eletrônicos espalhados por bancos, postos de gasolina e supermercados.
O Banco Central do Brasil também transporta numerário - cédulas e moedas - e em grande quantidade, observa Wagner Carvalho, conselheiro do Sinal. Mas essa atividade não está subordinada à Lei 7.102/1983 porque o BC é uma autarquia federal, e não uma instituição financeira. Realiza o transporte de numerário por conta da competência legal a ele atribuída na Lei 4.595/1964. Em seu artigo 10, essa lei estabelece que compete apenas ao Banco Central a emissão de papel-moeda e moeda metálica e a execução dos serviços do meio circulante, que inclui o transporte do dinheiro para os bancos, serviço atualmente terceirizado para o Banco do Brasil. Todo numerário que está no interior do BC e aquele nas tesourarias do custodiante à ordem do BC, é considerado dinheiro não emitido e, por consequência, são valores não monetizados.