Ano XXVI - 22 de novembro de 2024

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Parte 7 - GLOBALIZAÇÃO, CONCORRÊNCIA TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL E TRANSPARÊNCIA FISCA



A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL

THOMAS PIKETTY: O CAPITAL NO SÉCULO XXI

São Paulo, 20/03/2015

Referências: Desigualdade. Tributação Justa. Progressividade. Imposto de Renda. Imposto sobre Grandes Fortunas. Transparência Internacional.

PIKETTY E A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL

Por Ricardo Lodi Ribeiro - Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT). Advogado e Parecerista. Publicado pela Revista de Finanças Públicas - Tributação e Desenvolvimento - V.3, N.3 (2015). Acesso em 20/03/2015.

7. GLOBALIZAÇÃO, CONCORRÊNCIA TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL E TRANSPARÊNCIA FISCAL

É inevitável constatar que com a Globalização mostra-se rompida uma das principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaços delimitados pelos Estados nacionais. Porém, o que pode ser considerado como a decadência da modernidade, pode também marcar o início de uma segunda modernidade, desde que sejam superadas as ortodoxias que levaram ao esgotamento da primeira. (68)

(68) BECK, Ulrich. O que é Globalização? – Equívocos do Globalismo, Reposta à Globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 26 e 46.

Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar outros problemas sociais e econômicos. Para se proteger da livre atuação das empresas transnacionais, garantindo os direitos de seus cidadãos, os Estados nacionais adotam medidas que acabam por afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desemprego e miséria. Por outro lado, o desenvolvimento econômico gerado pelos investimentos dos agentes transnacionais não se apresenta como solução ao crescimento da exclusão social e da concentração de renda, como destaca Ulrich Beck (69):

(69) BECK, Ulrich. O que é Globalização?,p. 46.

“Empresas transnacionais superam a si próprias com taxas recordes de lucratividade B e de corte expressivo de postos de trabalho. Em seus balanços anuais os conselhos das empresas apresentam uma sucessão de lucros astronômicos enquanto os políticos, que devem justificar o escândalo do desemprego, voltam à carga com novos aumentos de impostos na esperança quase sempre vã de que, da riqueza dos mais ricos, caiam dos céus alguns postos de trabalho. Cresce, por consequência, a intensidade do conflito – inclusive dentro do campo econômico – entre contribuintes virtuais e contribuintes reais. Ao passo que as empresas transnacionais escapam dos impostos do Estado nacional, as pequenas e médias empresas, responsáveis pela maior parte da oferta de postos de trabalho, sangram nas mãos dos novos entraves da burocracia fiscal. O humor negro da história entra em cena: são justamente os perdedores da Globalização que deverão pagar tudo, o Estado Liberal e o funcionamento democrático, enquanto os vencedores seguem em busca de lucros astronômicos e se esquivam de suas responsabilidades para com a democracia do futuro”.

Parece assistir razão, a Dani Rodrik quando este afirma que Estado-nação, democracia e globalização constituem um trio instável no século XXI, devendo um dos três ceder aos outros dois, pelo menos em parte. (70)

(70) RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the Worrld Economy. New York: Norton, 2011, apud: PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 633, nota 35.

Daí a dificuldade de estabelecer a tributação dos mais ricos por decisões unilaterais do Estado nacional, em um ambiente de grande concorrência fiscal entre os Estados, o que acaba por fazer prevalecer propostas de abandono a tributação sobre a renda e a sua substituição pela taxação sobre o consumo, como no século XIX. (71)

(71) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 546.

Por outro lado, o conservadorismo jurídico em um ambiente europeu marcado pela consagração do direito absoluto de livre circulação de pessoas, bens e capitais acaba por fragilizar os direitos dos Estados de promover o interesse geral, inclusive no que se refere à cobrança de impostos. (72)

(72) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 551.

Se o desenvolvimento econômico escapa do controle do Estado nacional, as suas consequências, como o desemprego, a pobreza, a imigração, a violência urbana, têm o seu equacionamento exigido do Estado Social, (73) cada vez mais frágil para atender a essa crescente demanda, o que gera crises políticas que colocam em risco o futuro da democracia. (74)

(73) BECK, Ulrich. O que é Globalização?, p. 36.

(74) BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179.

Esses tempos em que vivemos, não há o fim da política, mas seu recomeço. O desmoronamento do socialismo real não põe fim à crítica à sociedade industrial capitalista, mas ao contrário, abre novas perspectivas a partir da autocrítica social. (75)

(75) BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002, p. 125.

Em consequência, é preciso reinventar a política a partir de dados extraídos desses novos tempos. Se por um lado a Globalização econômica leva o comércio à escala internacional, gerando crescimento do poder das empresas transnacionais em detrimento dos Estados nacionais (76) e dos trabalhadores, de outro o avanço tecnológico e a revolução nos meios de informação e comunicação universalizam os direitos humanos e a democracia, despertando a atenção global sobre as questões ambientais, os direitos das minorias, a pobreza mundial e exigindo que os assuntos públicos e privados sejam tratados à luz da transparência. A reinvenção da política não se caracteriza pelo triunfo do neoliberalismo, mas, ao contrário, pela crítica ao domínio do plano econômico sobre todos os demais, e ao autoritarismo político a serviço da lógica do mercado. (77)

(76) Ao mesmo tempo em que a Globalização fragiliza o Estado Nacional, cria as condições para o aparecimento de novos deles, a partir do desmembramento das regiões mais ricas, ou ainda da concessão de maior autonomia aos entes periféricos. Nesse sentido:

OFFE, Claus. “A Atual Transição da História e Algumas Opções Básicas para as Instituições da Sociedade”

In: PEREIRA, L.C. Bresser; WILHEIM, Jorge; e SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: UNESP, 2001, p. 125: “a Globalização envolve incentivos para “comportamento de bote salva-vidas” e separação subnacional dos grupos e regiões (relativamente) mais ricos que, de forma bastante racional do seu ponto de vista, lutam para defender, explorar e isolar suas vantagens competitivas locais e regionais, em vez de dividir os avanços com outras (e supostamente mais vulneráveis) unidades do Estado ao qual elas pertencem. Isso tem se dado preferencialmente por meio de secessão e construção de estados separados, ou então por meio de amplas formas de autonomia fiscal do conjunto da federação”.

(77) BECK, Ulrich. O que é Globalização?,p. 225.

Nesse cenário, surgem no plano internacional e interno regras relativas à transparência fiscal tendente a tornar claras a movimentação de riquezas em um mercado globalizado, viabilizando a sua tributação pelos Estados nacionais. Em nosso país, é princípio constitucional implícito que determina que atividade financeira, seja ela realizada pelo Estado, seja desenvolvida pela Sociedade, deve ser pautada pela clareza, abertura e simplicidade. (78)

(78) TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 243.

Para Túlio Rosembuj, a transparência fiscal internacional se dirige à tributação dos sócios ou controladores de entidades não residentes mediante a inclusão em suas respectivas bases imponíveis de determinadas rendas obtidas fora do território e que suportaram uma tributação inferior àquela praticada pelo Estado de residência. (79)

(79) ROSEMBUJ, Túlio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 174.

No âmbito da tributação, a transparência fiscal se dirige contra o planejamento fiscal praticado com abuso de direito, e o combate por meio de cláusulas antielisivas que procuram afastar estratagemas destinados a evitar ou minorar a tributação por meio da criação de estruturas societárias opacas, sem atividade operacional, destinadas viabilizar a transferência, por meio de operações artificiais, de todo o lucro auferido em determinado país para outro de tributação favorecida.

Na década de 1930, nos Estados Unidos, surgem os primeiros mecanismos para a adoção da transparência fiscal internacional. Em 1962 são aperfeiçoadas no Governo Kennedy com a criação da Controlled Foreign Corporation (CFC), (80) a partir da desconsideração da personalidade jurídica de empresas cuja constituição tenha sido inspirada predominantemente em razões de ordem fiscal, como se esta sociedade fosse transparente, permitindo a tributação dos seus respectivos sócios, independentemente da distribuição dos lucros. (81)

(80) TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento Tributário: elisão abusiva e evasão fiscal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 67.

(81) XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 360.

Pelo modelo de transparência fiscal internacional adotado nos Estados Unidos, que foi seguido por países como Alemanha, Canadá, Japão, França, Noruega, Grã-Bretanha, Portugal Itália e Espanha, (82) algumas classes de rendimentos passivos auferidos pela controlada, desvinculadas das atividades econômicas produtivas, (83) são tributadas pelo Estado de residência da controladora, como é o caso de dividendos, arrendamentos, juros, financiamentos, independentemente do país de domicílio da controlada. Em outros modelos, denominados de jurisdição designada, a desconsideração da personalidade jurídica da controlada só ocorre se esta for domiciliada em paraísos fiscais.

(82) GARBARINO, Carlos. “La Imposición de La Renda de La Empresa Multinacional” In: UCKMAR, Victor. Curso de Derecho Tributario Internacional, tomo I. Bogotá: Temis, 147-173, 2003, p. 157.

(83) ROSEMBUJ, Túlio. Derecho Fiscal Internacional, p. 175.

Como se vê, a transparência fiscal internacional, fundamento para a adoção das normas de CFC, traduzem-se em cláusulas antielisivas aplicadas a situações em que há o abuso de direito na utilização da pessoa jurídica, cuja criação e funcionamento têm como objetivo exclusivo a redução do imposto a ser pago no país dos controladores, não relevando maior propósito econômico. O seu aprimoramento é essencial para atenuar os efeitos danosos da concorrência fiscal internacional.

É nesse contexto de medidas de incremento da transparência internacional que a instituição do imposto sobre grandes capitais pode fazer a diferença, independentemente da frustração inicial que os efeitos danosos que a concorrência fiscal internacional poderá promover em sua arrecadação. Pode ser um remédio que, em um primeiro momento, não se mostre forte o suficiente para atender à necessidade de arrecadação de recursos em razão dos efeitos danosos da concorrência fiscal, mas a sua introdução, ainda que com uma alíquota módica em um primeiro momento, poderá inocular o vírus que será mortal ao crescimento da guerra fiscal internacional, especialmente se a sua introdução se tornar regra na maioria dos países em decorrência de tratados internacionais.

Assim, independentemente da significância da arrecadação do imposto sobre grandes capitais, a sua instituição, ainda que sob alíquotas modestas, tem a função de conferir transparência às operações transnacionais das empresas, gerando conhecimento e informação sobre as fortunas em um considerável esforço de regulação financeira (84). Afinal, o imposto é sempre mais do que um imposto, é uma maneira de solidificar as definições e as categorias próprias ao direito e ao contexto jurídico. Assim, o imposto sobre o capital seria uma forma de cadastro financeiro mundial. (85)

(84) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 504-505.

(85) Vide em Piketty a importância da função do imposto como cadastro de transações, a partir do feliz exemplo da desestruturação da propriedade no império romano a partir do abandono do imposto fundiário imperial e, por consequência, também dos títulos de propriedade e dos elementos cadastrais que o acompanhavam, contribuindo para aumentar o caos econômico na Alta Idade Média. (PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 506 e 623- nota 4).

Ainda dentro desse desafio de ampliar os espaços dominados pela transparência internacional, é preciso combater os paraísos fiscais por meio de ampliação dos acordos internacionais que obriguem a informação automática sobre as transferências internacionais, de forma a que cada autoridade nacional possa receber todas as informações necessárias para lhes permitir calcular o patrimônio líquido de cada cidadão, a partir de declarações pré-preenchidas pelo governo. De acordo com a proposta de Piketty, cada contribuinte receberia todo ano os seus ativos e passivos conhecidos pela administração fiscal, reavaliados anualmente pelo valor de mercado. A justificativa da necessidade de os lançamentos serem realizados com base em declarações pré-preenchidas pelo governo reside na tendência dos contribuintes a reduzir a sua base de cálculo de 10 a 20% por ocasião de suas próprias declarações.

Para tanto, o grande passo da transparência fiscal internacional seria dado com a promoção das transmissões automáticas de informações bancárias para o âmbito mundial, de maneira a incluir os bancos localizados no exterior, com o fim dos sigilos bancários em paraísos fiscais, pois como esclarece Piketty (86):

"O direito de estabelecer sua própria taxa de tributação não existe. Não se pode enriquecer por meio do livre-comércio e da integração econômica com os vizinhos e depois desviar impunemente sua base fiscal. Isso parece roubo, pura e simplesmente."

(86) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 504-505.

Porém, ainda que sejam coibidas todas as fraudes com o combate à evasão e à elusão fiscal, ainda resta um espaço amplo para o planejamento tributário internacional que dificulta a tributação dos grandes capitais, a partir da não distribuição de lucros para os acionistas em patamares mais elevados de capital, que conseguem muito bem viver sem a integralidade dos seus rendimentos, podendo deixar a maior parte dos seus recursos em holdings familiares no exterior. Piketty identifica três soluções possíveis para o problema:

  1. a integração para fins fiscais da tributação na renda individual dos rendimentos auferidos nas holdings ou nas empresas que esses indivíduos tenham participação, em detrimento da personalidade jurídica dessas empresas, havendo ou não abuso de direito no planejamento fiscal, o que pode acabar por prejudicar as empresas verdadeiramente operacionais;
  2. a presunção da renda pelo valor do patrimônio a partir de uma estimativa fixa de rendimento, a fim de integrar este à tributação progressiva da renda, com o risco de promover a tributação fictícia, e, muitas vezes, contrária à capacidade contributiva;
  3. aplicação de tabela progressiva sobre o patrimônio do indivíduo, o que, segundo ele, apresenta-se mais vantajoso considerando a graduação da taxação em razão do nível da fortuna, em função das taxas de retorno observadas para determinado patamar de riqueza.

Sendo o capital o melhor indicador da capacidade contributiva das pessoas mais ricas em relação à renda anual, muitas vezes difícil de mensurar, o imposto sobre capital permite complementar o imposto de renda em todos os casos em que as pessoas possuam uma renda fiscal claramente insuficiente em relação ao seu patrimônio. (87)

(87) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 512.

Embora a tributação em escala global sobre os grandes capitais seja uma proposta que nos pareça um tanto utópica em razão do atual grau de integração entre os Estados nacionais, a taxação das grandes fortunas por cada um deles, é medida pode trazer resultados muito positivos, não só em termos arrecadatórios, mas também distributivos, desde que, em um ambiente de ampla concorrência fiscal internacional, seja acompanhada de esforços internacionais de combate à evasão e elisão tributárias, bem como da adoção e ampliação das regras de transparência fiscal internacional, baseadas na técnica da Controlled Foreign Corporation (CFC), do combate ao sigilo bancário e aos paraísos fiscais.

CONTINUA...







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