A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL
THOMAS PIKETTY: O CAPITAL NO SÉCULO XXI
São Paulo, 20/03/2015
Referências: Desigualdade. Tributação Justa. Progressividade. Imposto de Renda. Imposto sobre Grandes Fortunas. Transparência Internacional.
PIKETTY E A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL
Por Ricardo Lodi Ribeiro - Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT). Advogado e Parecerista. Publicado pela Revista de Finanças Públicas - Tributação e Desenvolvimento - V.3, N.3 (2015). Acesso em 20/03/2015.
2. A ESCALADA DA DESIGUALDADE NO FINAL DO SÉCULO XX
A partir do exame da evolução da renda e do patrimônio em duas dezenas de países desenvolvidos e emergentes nos últimos dois séculos, Piketty constata que a desigualdade entre ricos e pobres tende sempre a aumentar na medida em que a taxa de rendimento do capital (r) torna-se maior do que a taxa de crescimento da renda e da produção nacionais (g).
Sempre que r > g a desigualdade aumenta pois os patrimônios originados no passado se recapitalizam mais rapidamente do que a progressão da produção e dos salários. Segundo Piketty (5) :
“Essa desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho.
Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro.”
(5) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 555.
Essa dinâmica tende a ser exacerbada no século XXI quando se espera, como demonstra o autor, que as taxas de crescimento econômico gravitem em torno de 1 a 1,5% ao ano, enquanto a remuneração do capital em média deverá ficar situada na faixa anual de 4 a 5%.
De acordo com o estudo, o crescimento futuro dos países já desenvolvidos não deve superar esse patamar, ao contrário do que ocorreu na fase áurea do século XX, dos anos de 1950 a 1970, em função dos investimentos na reconstrução e na recuperação da economia após as duas Guerras Mundiais.
Presentemente, crescimento mais elevado só será encontrado nos países emergentes, que ainda guardam um déficit a ser superado em relação aos países mais desenvolvidos. Superado esse déficit, o crescimento tende a diminuir.
A esse fenômeno soma-se o fato de que as taxas de retorno do capital tendem a aumentar, e até a dobrar, de acordo com o seu tamanho inicial, uma vez que os grandes investidores costumam encontrar melhores rendimentos se comparados aos pequenos poupadores. (6)
Esses dois fatores somados levam a um natural aumento da desigualdade, como sempre aconteceu no sistema capitalista, que tende inercialmente a acumulação de capital, como destaca Piketty (7):
"O problema é que a desigualdade r > g, reforçada pela desigualdade dos rendimentos em função do tamanho do capital, conduz frequentemente a uma concentração excessiva e perene da riqueza: por mais justificáveis que elas sejam no início, as fortunas se multiplicam e se perpetuam sem limites e além de qualquer justificação racional possível em termos de utilidade social.”
(6) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 420.
(7) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 432.
Essa tendência natural à concentração de riquezas no sistema capitalista só foi atenuada ao longo do século XX, em virtude das duas Guerras Mundiais e da Crise econômica de 1929, que fizeram tábula rasa do passado, reduzindo bruscamente o retorno do capital, gerando a ilusão da capacidade do capitalismo em superar essa contradição fundamental.
Mas, ao contrário dos que apontam a redução das desigualdades na segunda metade do século XX como prova de que o desenvolvimento do capitalismo e o avanço tecnológico levariam a redução das divergências entre o topo e a base da pirâmide social, Piketty sustenta que a convergência verificada no período é fruto dos referidos acidentes históricos que, embora não possam ser previstos ou planejados, não são inerentes à acumulação de riquezas no capitalismo. (8)
(8) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 556.
Porém, as distinções na desigualdade de renda e de patrimônio verificadas entre os variados períodos históricos e países pesquisados, embora sutis, não são desprezíveis, e se devem à política tributária adotada pelos Estados nacionais, como é o caso da introdução da tributação progressiva sobre a renda e heranças no período posterior à primeira guerra mundial e, especialmente, à segunda guerra mundial, como medidas destinadas à reconstrução nacional adotada, especialmente, nos EUA e no Reino Unido. (9)
(9) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 486.
De forma inversa, a vertiginosa queda da progressividade nos EUA e no Reino Unido, a partir dos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, a partir dos anos de 1980, justifica em parte o salto das remunerações muito elevadas, com o incremento do aumento da proporção entre o rendimento do capital e o crescimento econômico nacional. (10)
(10) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 346 e 483.
Ainda mais grave devem ser os efeitos nos EUA, do Economic Growth and Tax Relief Act, do segundo mandato de George W. Bush, em 2001, que reduziu as alíquotas de todas as faixas tributárias, como destacam Liam Murphy e Thomas Nagel. (11)
(11) MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 176. Vale analisar na obra os projetos de lei apresentados por congressistas norte-americanos visando maiores restrições à progressividade.
Ao grave declínio da progressividade tributária soma-se como fator de aumento da desigualdade a possibilidade dos detentores das grandes riquezas, aproveitando-se de um ambiente de concorrência fiscal entre os Estados nacionais em um contexto de livre circulação de capitais, escolherem o montante tributário que irão suportar, o que vem promovendo a arrecadação regressiva no topo da pirâmide tributária. (12)
(12) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 486.
Em consequência desses fatores, a desigualdade na distribuição de riquezas mundiais no início dos anos de 2010 é comparável pelo autor àquela existente entre 1900-1910, a sociedade dos rentistas, tão bem tratada nos livros de Jane Austen, como Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito. No cenário mundial atual, a desigualdade é escandalosa, com o milésimo superior da população detendo 20% do patrimônio total; o centésimo superior perto de 50% e o décimo superior entre 80 a 90%. A metade inferior menos de 5%! (13)
(13) PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 427.
Ao contrário do que sustentam os defensores da tese de que o aumento da desigualdade do topo da pirâmide social não chega a ser um problema sério, desde que atendidas as condições de vida digna para todos, (14) os epidemiologistas britânicos Richard Wilkinson e Kate Pickett (15) em interessante estudo estatístico sobre os efeitos da desigualdade para além da economia, demonstram que o agravamento da desigualdade social não gera consequências nefastas apenas para os pobres, acabando por contaminar toda a sociedade, com o sentimento de injustiça social provocando o agravamento das divisões de classes a partir da acendrada valorização dos estatutos estamentais e o consequente abalo da confiança entre desiguais. A partir da análise de abundantes dados estatísticos, concluem os autores que não é a pobreza, mas o grau de desigualdade social de um país, o fator que mais diretamente relaciona-se ao bem estar de toda a sociedade, como a vida comunitária, a saúde física e mental, o consumo de drogas, a expectativa de vida, a obesidade, o desempenho educacional, a violência urbana, o grau de encarceramento e a maternidade na adolescência.
(14) Por todos: Rawls, John. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 149-150; e MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 249 e 256.
(15) WILKINSON, Richard e PICKETT, Kate. O Espírito da Igualdade – Porque Razão as Sociedade Mais Igualitárias Funcionam Quase Sempre Melhor. Trad. Alberto Gomes. Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 283-285.
Como se vê, a dinâmica da distribuição de riqueza se apresenta por movimentos de convergência e divergência entre os extratos da pirâmide social. Embora registrem-se em alguns momentos históricos forças de convergência, como se verificou ao longo dos anos 50 a 70 do século XX, não existe um elemento natural ao processo de acumulação capitalista capaz de evitar o crescimento da desigualdade. Por isso, são indispensáveis medidas estatais para coibir a explosão das forças naturais de divergência.
CONTINUA...