A IRREFREÁVEL MARCHA CÍVICO-ESCATOLÓGICA
O POVO BRASILEIRO DE VEZ EM QUANDO: UM PÉ NO BASTA E DEPOIS UM PÉ NA BOSTA
Correio Eletrônico da Revista Caros Amigos - Edição nº 175 - 22/10/2004
Por Lula Miranda - poeta e cronista da Agência Carta Maior. Repaginação e anotações em vermelho por Americo G Parada Fº - Contador CRC-RJ 19750 (Revisado em 16/12/2011)
Não, já vou logo avisando, não se incomode com um possível mau gosto no uso de algum termo, ou até mesmo com o estranhamento causado pela utilização dessa expressão composta por palavras aparentemente tão singulares, excludentes e irreconciliáveis presentes no título desse texto: “marcha cívico-escatológica”.
NOTA: Segundo o Dicionário Aurélio, a palavra Escatologia significa "tratado acerca dos excrementos" (da Bosta). Na teologia seria a "doutrina sobre a consumação do tempo e da história" ou "tratado sobre os fins últimos do homem".
Não se incomode, a nossa realidade é assim mesmo: estranha, por vezes feia, suja, ilógica, irreconciliável. A minha modesta intenção aqui é que você, ciente dos passos cadenciados dessa marcha insensata, escolha, por si próprio, o seu próximo passo [nas eleições] e não se guie pelo ímpeto dos que marcham resolutos à revelia da própria vontade. Ou até mesmo para que você, caso queira, já vá ensaiando a marcação dessa nossa marcha tão brasileira e cadenciada - se é que você é realmente um “patriota” ou até mesmo um entusiasmado admirador desse nosso inesgotável e “grandioso” desfile cívico.
Ensaiemos todos! Passo a passo. Os jovens, as crianças, os idosos, os bebês. Sim, até os bebês, em seus primeiros passos. As crianças nas ruas - como se brincassem de amarelinha - , nas creches, nos playgrounds dos prédios. Os jovens nos parques, nos clubes, nas escolas, nas praias. Os trabalhadores nas repartições ou nos pátios das fábricas.
É assim a marcação, perceba a cadência: um pé no basta e um pé na bosta. Atenção, um pé de cada vez: um pé no basta, um pé na bosta; pé no basta, pé na bosta. E assim sucessivamente. E de trás para frente também. Bosta. Basta. Bosta. Basta.
Não sou assim tão bom de História, tenho até um severo problema de memória - quem me conhece mais amiúde bem o sabe. Mas, olhando um pouco para trás, quero dizer, para o nosso passado mais recente, a tal história contemporânea, e já vislumbrando o que o futuro (incerto) insinua, e isso me parece bem nítido, o Brasil, tanto na Política como na Economia, vem [vinha], reiteradas vezes, executando essa singular e vexatória marcha do “um pé no basta e um pé na bosta”.
Ou, se assim preferirem os ouvidos mais sensíveis: um pé à frente, outro atrás; pé à frente, pé atrás (mas assim, nessas palavras, perde-se toda a percepção da constante evolução e mobilidade da marcha). Senão vejamos.
Tivemos Getúlio como presidente da República em duas ocasiões, com direito aos tais avanços e conquistas nas leis trabalhistas, mas, em compensação, experimentamos também o seu Estado Novo.
Depois da ditadura getulista (1930-1945), com o restabelecimento das diretas para presidente, veio Dutra, que, liberal na economia, cassou o PC [Partido Comunista].
Depois Getúlio novamente, agora como “o homem que ouvia a voz dos humildes”. Esse último mandato, mais popular e populista, você sabe, terminou em suicídio. Bosta.
Um passo adiante, veio Juscelino “50 anos em 5” Kubitschek. Basta. Após JK, tivemos o idiossincrático e folclórico Jânio Quadros, que renunciou. Bosta.
Tá pegando o fio da história e a cadência da marcha?
Depois veio João Goulart, que havia sido ministro do Trabalho de Getúlio. E parecia que, enfim, viriam as tais reformas de base. O basta parecia ter vindo para ficar.
Aí veio o golpe e a ditadura militar: atolamos de vez o pé na lama - usei agora esse termo “lama” para lhes parecer o menos grosseiro e desagradável possível.
JK, à essa época, era senador da República e foi cassado, exilado, preso, depois novamente exilado etc. Anos depois retornou ao Brasil onde morreu num estranho acidente de carro, num opala.
O último dos militares foi Figueiredo, que, salvo engano, havia sucedido um outro general: Geisel. Ou seja, tudo a mesma bota - disse bota, note bem.
Depois de Figueiredo, num tal de Colégio Eleitoral (os militares haviam enterrado de vez a democracia com o golpe, e, é claro, com seus seguidos Atos Institucionais, e assim já não havia eleição direta para presidente), conseguiu-se “eleger” Tancredo Neves - o seu concorrente, e preferido dos militares, era, veja bem, Paulo Maluf! Basta ou bosta? - desculpe, não resisti. Dessa vez, deu basta.
A nação então pôde suspirar aliviada com a “eleição” - via Colégio, não esqueça - de Tancredo Neves, avô do mancebo (mancebo à época, assim como, em certa medida e sentido, ainda hoje), o “menino” Aécio Neves, hoje [no ano de 2004] governador tucano pelas Minas Gerais.
Tancredo, que estivera inclusive ao lado de Juscelino em um dos seus depoimentos aos militares (ou terá sido interrogatório?), sabe-se, morreu também de forma estúpida e precoce. A nação estava novamente enlutada, como já ocorrera antes com JK.
Quem era o vice de Tancredo? Elementar: José Sarney.
Sarney, antigo representante da chamada “UDN bossa-nova” no Maranhão, que, por sua vez, colocou ACM - veja bem, ACM! - no ministério das Comunicações.
“Malvadeza”, isso você deve lembrar, radicalizou no loteamento dos canais de TV e rádio aos políticos, notadamente, claro, para si mesmo e seus correligionários ou parentes mais próximos.
Foi a partir daí, e não tão-somente com a ditadura, como se percebe, que a mídia foi parar nas mãos das oligarquias. Bosta! - desculpe a expressão da verdade, mas não resisti de novo.
Na primeira eleição direta para a Presidência da República, depois de um longo e tenebroso período, os brasileiros puderam escolher livremente - sim, puderam, digamos assim, apesar do parcialismo da grande imprensa - entre Lula e Fernando Collor, o imberbe caçador de marajás das Alagoas. Escolheram Collor e, isso você ainda lembra, deu no que deu: lama - desculpem, já ia dizendo bosta de novo.
Então, com o impeachment do “caçador de marajás”, assumiu o seu vice, que era do PMDB (ou já era do PRN? - a memória falha), um outro senhor das Minas Gerais. Um senhor muito “mineiro”, que gostava muito de fuscas, tinha uma necessidade incrível de aparentar e alardear uma certa fama de “mulherengo” (nas Minas Gerais corre uma outra versão) e que teve o inequívoco mérito de fazer um governo de coalizão, e de transição, salvaguardando a ordem institucional, por assim dizer. Basta!
Coisa de dois anos depois, deu-se então mais um passo, elegemos um ministro de Itamar, Fernando Henrique Cardoso.
Parecia então que o “basta!” tinha vindo, enfim, para ficar. Afinal, o homem era um paulista, veja bem, um paulista! E, além disso, ou talvez por isso, um grande e “refinado” intelectual - pelo menos era isso que diziam os ... paulistas. Além de tudo, era de um tal Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, coisa fina na política brasileira de então, os “melhores” que haviam rompido com o (P)MDB de Itamar - seria a versão tupinikim da Terceira Via. To be or not to be , tupy or not tupy? - that’s the question no Brasil letrado, de berço, poliglota. Ledo Engano. Via errada. Wrong way. Deu bosta.
Passado um mandato, entre medíocre e abaixo da crítica, após vasta “privataria”, entrega do patrimônio público e vertiginoso aumento da dívida pública (o país chegou à beira do abismo, da insolvência), comprou-se mais um mandato e, quatro anos depois, já na quarta e última tentativa, elegia-se Luiz Inácio Lula da Silva. Basta!
Até quando vai durar o basta?
Desgraçadamente, parece que só até o próximo passo. É só acompanhar o que acontece agora [no ano de 2004] na eleição municipal na cidade de São Paulo, espécie de “prévia”, segundo alguns analistas, da eleição presidencial de 2006 e um 3º turno do pretérito pleito de 2002.
Veja bem o caso de São Paulo! Depois de um peremptório “basta!” dos paulistas, melhor dizendo, dos paulistanos, isso nas eleições municipais de 2000, apeando do poder políticos nefastos que pilharam e praticamente destruíram a cidade em oito anos de desgoverno [Maluf e Pitta], e elegendo Marta Suplicy que propiciou aos moradores da grande metrópole brasileira o resgate da sua cidade, e da sua cidadania, que estavam no limbo.
Não é que os conservadores paulistanos estão, mais uma vez, dispostos a novamente chafurdar os pés na lama elegendo José Serra, candidato do PSDB derrotado por Lula nas eleições de 2002!? Dando assim o primeiro passo para a implantação de uma verdadeira dinastia tucana no Estado de São Paulo (o PSDB está no governo paulista há quase 10 anos! [isto em 2004] e que governo medíocre!) e a retomada do poder central após oito anos de desolação. Pé na bosta.
Cá para nós, é muita escatologia pra pouco civismo. Não, não falo somente dos termos (impróprios?) dessa crônica não. Falo do país mesmo. Do país e essa sua crônica escatologia. Ô povinho besta! Ô povinho bosta! Ops!
Veja também o texto Os Anarquistas.