O DESCOMPASSO ECONÔMICO-FISCAL DURANTE A IMPLANTAÇÃO DO PLANO REAL
FHC NA FOLHA DE SÃO PAULO (em 1999):
SUMÁRIO:
Coletânea por Américo G Parada Fº - Contador - Coordenador do COSIFE
O CAMINHO DA DIGNIDADE
CLÓVIS ROSSI
São Paulo - A pesquisa que esta Folha publica hoje é o mais completo desastre para o presidente.
Quem, como ele, antes da posse (a primeira) despertou em 70% dos brasileiros a expectativa de que seu governo seria ótimo/bom não teria o direito de chegar agora, após quatro anos e seis meses do novo mandato, a apenas 16% de ótimo/bom.
Está tudo perdido, então, para o presidente?
Meu palpite é o de que está, sim, se ele mantiver o rumo que seguiu nesses 4,5 anos. A obsessão de FHC tem sido a de fazer tudo aquilo que os seus pares do mundo rico mais a comunidade financeira internacional gostariam que ele fizesse.
Parece um novo rico, de origem brega, que capricha no comportamento para demonstrar que, ao contrário do que diziam ou suspeitavam, não come com a mão, mas com garfo e faca.
Bobagem, presidente. Não é seguindo a cartilha do chamado "pensamento único" que o senhor será aceito internacionalmente. Ou melhor, pode até receber boas notas em comportamento, mas não em criatividade, ousadia, aplicação, idéias.
A única forma que lhe abriria um lugar na história seria iniciar o fechamento dessa feia e imensa ferida aberta na carne do país, representada pela mais obscena concentração de renda do planeta, mãe, avó e tia da pobreza disseminada, inaceitável em qualquer lugar, mas muito mais ainda em um país no estágio de desenvolvimento em que já está o Brasil.
Não, não estou propondo o populismo barato de reacender a pira da inflação só para alocar alguns bilhões para a área social. A única maneira de entrar, de maneira digna, nos salões do Primeiro Mundo é pôr de pé uma mecânica que, sem jogar fora a estabilidade de preços, produza crescimento com redistribuição de riquezas.
Não é nada fácil, claro. Mas o outro caminho, o da submissão ao "pensamento único", já mostrou que é, sim, fácil, mas é, ao mesmo tempo, ineficaz em termos de popularidade e indigno em termos de biografia.
OUTRO ESQUELETO NO ARMÁRIO
FERNANDO RODRIGUES
Brasília - Peça a qualquer pessoa de bom senso uma opinião sobre o caso do dossiê Caribe, e a resposta tende a ser mais ou menos assim: "Aquilo lá é tudo falso".
O presidente diz isso. Quando mandou processar quem supostamente divulgou o dossiê, classificou os papéis como "manifestamente falsos". A Procuradoria Geral da República, ao acatar o pedido de FHC, concordou dizendo que "são claras as evidências de que os documentos foram montados".
O problema é que o inquérito, produzido aos trancos e barrancos pela Polícia Federal, não diz nada disso.
São 730 páginas sem nada concluir sobre o que são os papéis do dossiê Caribe. Muito pelo contrário.
Depois de interrogar 47 testemunhas e enviar agentes para o Caribe, a PF só conseguiu confundir mais o caso. Não se sabe se são papéis falsos, verdadeiros ou uma mistura das duas coisas. E, nessa última hipótese, é impossível dizer onde termina o que é verdadeiro e quando começa o que é fraude.
É ridículo imaginar que FHC possa estar envolvido em ilegalidade tão rasteira. O mesmo vale para as personalidades tucanas envolvidas - Mário Covas, José Serra e Sérgio Motta.
Mas é mais incompreensível ainda que essas mesmas personalidades não tenham poder no Brasil para exigir que essa infâmia seja definitivamente esclarecida.
Passaram-se mais de seis meses desde a divulgação do dossiê Caribe. Até as carpas coloridas do espelho d'água do Palácio do Planalto sabem que o presidente gostaria de ver o assunto definitivamente esclarecido.
Por que isso não acontece? Três pessoas foram apontadas como responsáveis pela divulgação do dossiê Caribe - Maluf, o reverendo Caio Fábio e Lafaiete Coutinho. Como o inquérito só serve como papel de rascunho, esses acusados se livram facilmente do processo.
Será mais um esqueleto que o governo FHC vai colecionar, pois tudo indica que o dossiê Caribe acabou sem solução. O presidente poderia exigir um desfecho melhor. Por que não o faz?
BOSSA EQUIVOCADA
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Noite dessas, vi o senador Jefferson Peres pronunciando-se, no Senado, sobre a mais recente crise do governo de FHC. Num episódio banal, que deveria se limitar aos segundos escalões, dois ministros e o presidente da República se embananaram por causa de um diretor da Polícia Federal.
O discurso não foi feito em tom exaltado, pelo contrário. Mas o senador pintou um retrato deprimente de FHC, homem sem pulso para governar no varejo e no atacado. Pasmosa sua incapacidade de tomar decisões. Em nome de um consenso mais retórico do que real, ele deixa rolar sua autoridade até que a crise seguinte faça esquecer a anterior.
O presidente nasceu no Rio e tem alguma coisa de anedótico. Como se sabe, o carioca não paga uma dívida velha. E deixa a dívida nova tornar-se velha. Assim vai levando. É o malandro de camisa listrada tocando pandeiro para Carmem Miranda dançar. Muito decorativo num filme de Disney, num quadro de Teruz ou de Heitor dos Prazeres, num samba de Noel Rosa ou de Wilson Batista.
Não aprecio os homens sisudos, aqueles caras bigodudos da Velha República. O gaúcho Getúlio Vargas e o mineiro Juscelino Kubistchek, em épocas e circunstâncias diferentes, eram joviais. Getúlio gostava de rir, e muita gente o elogiava porque tinha fama de dar rasteiras. JK era pé-de-valsa e ria até demais.
Mas, na hora de governar, ficavam sérios e tomavam decisões. Pode-se condenar um e outro por algumas dessas decisões, mas o país não ficava à matroca por falta de comando.
O caso de FHC é melancólico. Nasceu para ser rainha da Inglaterra, ou seja, ter o poder decorativo da representação política e social. Mas nada com a vulgaridade da administração, as miudezas que embaciam o brilho do cargo.
Inacreditável que estejamos condenados a varar o próximo milênio com um comandante que não comanda. Ele não briga com ninguém. Acredita que assim ninguém brigará com ele.
EDITORIAL
CONLUIO TUCANO - MALUFISTA
Os cidadãos estão prestes a pagar mais uma conta que ficou pendente de manobras políticas do presidente Fernando Henrique Cardoso. Antiga, ela começou com a barganha entre o governismo e o então prefeito Paulo Maluf: o governo federal assumia a dívida paulistana, o malufismo entrava com votos de apoio ao Planalto no Congresso, inclusive para abortar a CPI dos Bancos, em 1996.
Desde então, o carrossel de títulos podres paulistanos e outras irresponsabilidades do malufismo-pittismo pegaram carona na generosidade federal com o dinheiro do cidadão. Agora, conluio do Planalto com o Senado vai produzir a mais nova etapa da longa história da malversação do dinheiro público no país.
Os cidadãos deste país pobre, do Brasil inteiro, vão pagar também a conta dos precatórios de Maluf, figura-símbolo da irresponsabilidade fiscal que a administração FHC diz querer erradicar do país. Graças a resolução do Senado, com bênção do Planalto, o governo federal vai assumir mesmo aquelas dívidas paulistanas que estão sub judice por fraude.
A manobra assume ares ainda mais escusos por ocorrer às vésperas do recesso parlamentar. O plenário do Senado aprovou ontem o requerimento para que seja votada ainda hoje, em regime de urgência, resolução que evita prejuízos para o Banco do Brasil com precatórios paulistanos.
O BB carrega em sua carteira de títulos nada menos que R$ 5,7 bilhões em papéis que, antes, tiveram guarida no Banespa. Tais papéis têm origem na prefeitura paulistana, que, além de ter sido o ninho em que se cultivaram técnicas de emissão de papéis públicos viciados, foi declarada inadimplente pelo Banco Central.
Mas foi esse mesmo BC que, em procedimentos ainda obscuros, gerenciou a transferência de papéis entre o Banespa e o Banco do Brasil.
Maluf lançou a Prefeitura de São Paulo num frenesi de endividamento eleitoreiro. Uniu depois suas conveniências às da coalizão governista federal, com quem negociou barganhas no Congresso, e, por fim, um acordo para a reeleição de FHC. A hora de pagar a conta dessa ciranda político-financeira chegou e, aliás, chegou ao pagador de sempre, os cidadãos de todo o país.
EDITORIAL
PAJELANÇA INDUSTRIAL
Em novo episódio de sujeição da política econômica a conveniências partidárias, o governo FHC colocou o BNDES a serviço da Ford, talvez por cortesia ao senador ACM (PFL-BA), que já havia desmoralizado o compromisso oficial com a responsabilidade fiscal administrando de forma inusual a crise do Banco Econômico, também da Bahia.
Ainda não há justificativa técnica razoável para a transação Ford-BNDES. Mas Brasília logo a produzirá, como tem feito com freqüência, dado o sem-número de casuísmos que há tantos anos compromete a política econômica.
Há um discurso pretensamente ético e utópico, que justifica barbaridades fiscais e inconsistências de política industrial em nome da redução da pobreza ou da superação das desigualdades econômicas regionais. De fato é urgente a desconcentração econômica no país, sem o que permanecerão os seculares e enormes bolsões de miséria do Nordeste -a instalação de grandes fábricas pode contribuir para inverter esse quadro.
Mas, na prática, lamentavelmente a miséria e a desigualdade regional são problemas crônicos, mesmo porque em boa medida foram adotadas sucessivas políticas públicas equivocadas, movidas pelo clientelismo e voltadas ao favorecimento de grupos com poder de pressão.
Causam espanto essas opções de um governo cujo presidente, há menos de uma semana, se dizia crítico de um passado de subsídios estatais e reservas de mercado.
Como explicar contradição tão flagrante em tão poucos dias?
Nada parece capaz de deter a pajelança industrial em que se converteram os rascunhos de políticas setoriais adotadas pelo governo federal.
Manipulação de medidas provisórias, uso político de créditos públicos, discriminação contra governos estaduais cujos mandatários não rezam pela cartilha oficial, reforço à guerra entre regiões quando o pacto federalista já se encontra rasgado de alto a baixo, a lista é longa e triste.
É o próprio governo federal que estimula o coronelismo regional, sujeitando a política econômica a atos de corporativismo e chantagem.
SEGUNDOS PENSAMENTOS
CLÓVIS ROSSI
São Paulo - Deu na Folha de domingo: "10 milhões estão sem emprego no Real".
Deu na Folha de ontem: "Cresce concentração de renda na Argentina".
Também da Folha de ontem: "Desemprego cresce para 9,8% no Chile".
O que têm em comum esses três países, além da fatalidade geográfica de ficarem na América do Sul? Todos praticam políticas econômicas similares, baseadas no chamado pensamento único, o receituário que manda privatizar, liberalizar, abrir, desregulamentar e por aí vai.
Não é preciso ter PhD em Harvard para pelo menos perguntar humildemente se algo não estaria errado nesse tipo de política.
Os brasileiros ingênuos ou de má-fé até poderão dizer que o Brasil não teve tempo suficiente nem fez todas as reformas necessárias para enquadrar-se direitinho no receituário, por mais que "reformas" tenha se transformado em muleta retórica para curar tudo, de pé-de-atleta a mau hálito.
Mas e a Argentina? Está há dez anos, praticamente, fazendo o que o pensamento único manda. Nem por isso aumentou a sua FIB (Felicidade Interna Bruta, o índice que realmente deveria contar), embora tenha aumentado espetacularmente o seu PIB (Produto Interno Bruto, a soma de bens produzidos em dado período).
Mas e o Chile? Mesmo descontando o período de intervenção no câmbio, que quebrou o país e durou até 1982, já são, portanto, 17 anos de liberalismo puro e duro. Nem dá para alegar, como no Brasil se faz às vezes, que o Congresso demora para aprovar as geniais propostas do governo.
No Chile, as tais reformas liberais foram feitas à ponta de baioneta, durante um dos regimes mais selvagens que o planeta já viu.
Nada contra (nem a favor tampouco) as receitas que concretizam o tal de pensamento único. Mas tudo contra o fato de ser único. Será que, com esses números todos, ninguém nos governos se anima a, pelo menos, ter segundos pensamentos?
FHC, A HORA É AGORA
FERNANDO RODRIGUES
Brasília - O vice-governador de Minas Gerais, Newton Cardoso (PMDB), fez uma ameaça gravíssima anteontem, depois de um apadrinhado seu perder o cargo no DNER mineiro:
"Vou chamar a imprensa e contar a história da reeleição que o Brasil não sabe. Preciso dizer que, se houver uma retaliação contra Minas, vai ter resposta. Eu não me chamo Itamar Franco (governador de Minas Gerais), que fica calado. Vou retaliar, e muito. O presidente que se cuide."
Diante dessa última frase, "o presidente que se cuide", o mínimo que Fernando Henrique Cardoso pode fazer é interpelar judicialmente o vice-governador mineiro. Ou Newtão confirma o que disse e revela seus segredos ao país ou deve ser processado por caluniar o presidente.
FHC ficará mais uma vez desmoralizado se fizer aquilo que mais gosta, ou seja, nada. Para quem tem repetido que manda no governo, essa é uma chance de ouro para provar sua autoridade. Afinal, Newtão pertence ao PMDB e terá de ser enquadrado junto com o seu partido.
O vice-governador de Itamar Franco criou para si um problema do tamanho das montanhas mineiras. Tem duas opções, ambas catastróficas.
Pode dizer que se excedeu e nada tem a contar. Nesse caso consolidará a imagem de falastrão.
A outra opção do ex-governador mineiro é realmente revelar a tal história secreta da reeleição. Também ficará em situação delicada: por que não contou antes, já que a emenda da reeleição foi votada em janeiro de 97?
A emenda da reeleição foi aprovada com votos de pelo menos dois deputados comprados por R$ 200 mil a cabeça. Segundo Newtão, isso foi uma "historinha boba que contaram".
FHC deve estar feliz por ter a chance de esclarecer esse episódio obscuro. Se esperava uma hora para se afirmar diante do PMDB, a hora é agora.
Mais uma da série "acredite, se quiser": Marco Maciel e Jorge Bornhausen são seus amigos íntimos, disse ACM no "Roda Viva". É isso aí.
CÚPULA DO RIO
FHC DEFENDE "CPMF GLOBAL" AO ENCERRAR A CIMEIRA
CLÓVIS ROSSI
Presidente sugere aos líderes de países ricos taxação dos capitais especulativos internacionais com a "Tobin Tax", proposta por economista dos EUA ganhador do Nobel
O presidente Fernando Henrique Cardoso sugeriu ontem a seus colegas da União Européia, América Latina e Caribe, que estudem seriamente a introdução da "Tobin Tax" (imposto Tobin, uma espécie de CPMF planetária) como "instrumento possivelmente útil" para enfrentar as frequentes turbulências financeiras.
A "Tobin Tax" é uma proposta do Nobel de Economia James Tobin (norte-americano que leciona na Universidade de Yale) para taxar os capitais que cruzam fronteiras, uma pilha de impressionante US$ 1,4 trilhão todos os dias.
O produto da taxação destinar-se-ia, na proposta original, a constituir um fundo para a erradicação da miséria no planeta.
Mas, mais recentemente, passou-se a cogitar desse imposto como forma de acumular recursos para socorrer, imediatamente, países vítimas de crises financeiras, como as que derrubaram economias asiáticas primeiro, a Rússia depois e, por fim, o Brasil.
Na sua intervenção ontem, durante o debate com os chefes de governo na Cúpula UE/América Latina-Caribe, FHC defendeu a "Tobin tax" exatamente sob este último aspecto.
O presidente disse que as novas modalidades de financiamento decididas pelas instituições financeiras internacionais, na esteira das crises recentes, são "necessárias mas insuficientes".
FHC já havia defendido a "Tobin tax" em outubro, durante a Cúpula Iberoamericana de Portugal, e, em seguida, no México.
Países ricos
Mas não deu passo objetivo algum para que a proposta fosse de fato estudada seriamente pelos países ricos, únicos com poder para realmente impor a taxação.
De todo modo, o presidente comprometeu-se com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), antigo defensor da proposta, a receber Tobin para discutir a idéia, em uma próxima viagem aos Estados Unidos.
Suplicy esteve com o professor norte-americano no dia 3 para convidá-lo a dar uma palestra no Congresso brasileiro, por orientação de seu presidente, o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA).
Tobin, no entanto, disse que sua mulher está muito doente, o que impede viagens mais demoradas. Prontificou-se a conversar com FHC nos EUA, em alguma viagem do presidente.
FHC, em carta a Suplicy, considerou "oportuna" a sugestão e informou ter orientado sua assessoria para que "registre a idéia e a tenha em mente na elaboração de minha agenda".
O presidente brasileiro não foi o único, nos debates fechados de ontem, a propor idéias de controle do capital especulativo. O presidente francês, Jacques Chirac, por exemplo, classificou de "muito perigosos" os paraísos fiscais "OFFSHORE" (as ilhotas que servem de plataforma para todo tipo de operações financeiras, legais ou não) e os chamados "hedge funds" (fundos que protegem seus participantes da desvalorização de uma moeda com apostas em outros ativos, por exemplo).
Fidel
Já o cubano Fidel Castro, fiel à sua tradição revolucionária, disse que não adiantava tentar reformar o sistema financeiro internacional tal como está concebido hoje. Pregou sua "demolição integral", para, aí sim, reconstrui-lo.
Propostas ou idéias para a reforma do sistema financeiro internacional têm surgido regularmente desde que a turbulência econômica tornou-se mais recorrente.
Mas elas perdem espaço na agenda internacional sempre que passa a fase aguda de cada crise. O presidente chileno, Eduardo Frei, chegou a manifestar ontem o temor de que o mundo esteja agora de novo na fase de "desmobilização" diante da necessidade de reforma financeira , exatamente por ter passado a fase grave da mais recente crise (a do Brasil).
Na carta sobre Tobin a FHC, Suplicy citou artigos do economista Paulo Nogueira Batista Jr., publicados pela Folha, em que este defende que o Banco Central recupere "a possibilidade de regular de modo seletivo e criterioso a entrada e saída de capitais".
Prova de que, superada a fase aguda da crise, há a "desmobilização": FHC respondeu que "o Banco Central já vem atuando com essa preocupação e sei que continuará assim".
O que o BC tem feito, regularmente, é o contrário: facilitar a entrada de capitais.
EDITORIAL
AMOSTRA DE DESCASO
Há o risco de que a Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios, a PNAD, não seja realizada em 99 por falta de dinheiro. Podem, pois, ficar ainda mais precárias as bases de dados necessárias ao planejamento socioeconômico no Brasil.
Realizada desde 1967 pelo IBGE, a pesquisa reúne indicadores essenciais sobre educação, renda e habitação. Em ocasiões especiais, levantou informações também sobre a situação do menor (85) ou o acesso a serviços de saúde (86). No quesito emprego, por exemplo, a PNAD é a única capaz de fornecer um resultado de caráter nacional. A Pesquisa Mensal de Emprego, também do IBGE, restringe seu campo a apenas seis regiões metropolitanas. Vale lembrar que boa parte da riqueza nacional é gerada em regiões desprezadas pelas demais pesquisas de emprego.
Foi com base em alguns resultados da PNAD de 95 que a coalizão tucano-pefelista pôde alardear os êxitos iniciais do Real. A pesquisa mostrou o aumento da renda média e pequena melhora em sua distribuição, o que permitiu ao ministro Pedro Malan vaticinar tendência de progresso dos indicadores sociais. Versão posterior da PNAD (97), no entanto, desmentiu o gradualismo otimista do ministro, evidenciando que a renda nacional voltara a se concentrar.
Ainda se aguarda o resultado da pesquisa de 98, que deve registrar os primeiros efeitos da recessão econômica dos últimos meses. Não seria aceitável que o estudo deste ano deixasse de ser realizado, como lamentavelmente ocorreu em 94. Interromper séries históricas tão importantes em país carente de bons instrumentos de gestão e planejamento é índice de descaso arcaico com o desenvolvimento do país.
A GRANDE MENTIRA
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Compreende-se que FHC peça que esqueçam o que escreveu. Alguns autores repudiam suas obras, proibindo os editores de reeditá-las.
O que não se compreende nem se perdoa é a mentira sobre fatos que escreveram a história de um tempo e a biografia de um cidadão. Repudia-se uma opinião, mas não se apaga uma ação.
Semana passada, o presidente da República desabafou contra os aliados que estão exigindo cargos e fazendo intrigas. Quando o regime era arbitrário -proclamou- ele estava nas ruas exigindo liberdade, democracia e justiça, enquanto muitos dos seus atuais críticos escondiam-se dentro de casa.
Não é verdade. FHC andou realmente pelas ruas, pregando idéias progressistas quando a esquerda tinha a certeza de tomar o poder pelo voto ou por um tipo qualquer de golpe. Rosnava-se que ele já teria se lançado ministro da Cultura de um novo governo ou mesmo de um regime populista.
Deu azar. A empolgação das esquerdas em 1964 foi substituída por uma debandada de auto-exilados que foram viver no exterior. Tirante os poucos prisioneiros trocados pelos sequestradores -esses sim, foram banidos por atos do governo militar-, os demais foram para o exílio justamente para não andarem pelas ruas clamando por justiça, democracia e liberdade.
FHC nunca foi preso. Quando a barra pesou mesmo, ele foi para fora. Durante os anos de chumbo não participou de nenhum protesto de rua, de nenhum movimento subversivo aqui dentro. Quando o pior da repressão passou, veio para sondar o terreno e viu que o caminho do poder era a direita. Logo que pôde, ficou nela.
A suspensão dos direitos políticos não ameaçou sua liberdade nem sua vida. Outros, na mesma situação, continuaram a luta, arriscando a própria pele. FHC não estava entre eles.
FOLHA DE SÃO PAULO, 24/08/99
CONTINENTE EM CHAMAS
ELIANE CANTANHÊDE
Caracas - Quem chega à Venezuela leva um susto. No país do petróleo, os carros caem aos pedaços. Filas daqueles "banheirões" americanos dos anos 60 se estendem pelo acostamento entre o aeroporto, no nível do mar, e o centro de Caracas, mil metros acima. Capôs abertos, tentam "respirar" para suportar a subida.
A cena ilustra o empobrecimento assustador de um país que, além de petróleo, tem carvão, bauxita, manganês. Com excelente clima, abriga selva amazônica, mata caribenha, mata atlântica, savanas, longos quilômetros de praias.
Em resumo: o país é rico e lindo, mas o povo está na miséria. Qualquer semelhança com outros países sul-americanos não é mera coincidência. Com um certo país que a gente conhece bem, menos ainda.
Tal a cigarra da fábula, a Venezuela caiu na farra durante o boom do petróleo. Preferiu importações desenfreadas a planejar o futuro, a investir no parque industrial. Com 70% a 80% das exportações penduradas no petróleo estatal, a corrupção grassou, a miséria explodiu.
Chega ao fim do milênio com uma queda da atividade econômica de 9% a 10% no último trimestre e 20% de desemprego. Olha-se em volta e tem-se a Colômbia, com guerrilha ao norte (ELN) e ao sul (Farc). Boa coisa isso não costuma dar.
Argentina vai ladeira abaixo, Paraguai dispensa comentários, Colômbia em pé de guerra, Venezuela tentando começar do zero. O Brasil? Bem, esse fez a maior privatização do planeta e deu a grana para a banca internacional. É a política dos juros. Ou do FMI.
Em meio ao caos, o venezuelano Hugo Chávez desconfia do olho gordo dos EUA sobre a Colômbia e discutiria isso amanhã com FHC. Ninguém quer um novo Kosovo bem debaixo do nosso nariz. Mas a prioridade de FHC é a "Marcha dos 100 Mil", antes que ela vire a "Marcha dos 100 Milhões" continente afora.
EDITORIAL
O GENERAL TEM RAZÃO
Com considerável atraso, o governo federal, pela voz do general Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar, descobre que o Brasil está próximo da "saturação" em relação à violência.
"A violência real e uma sensação aguda de desproteção e impunidade formam um cenário perigoso para a sociedade brasileira", diz documento que o general levou para um seminário realizado no Rio de Janeiro.
Como diagnóstico, é preciso, embora atrasado. Já faz alguns anos que a sociedade brasileira, em especial a das grandes cidades, sente-se desprotegida, uma sensação obviamente reforçada pela evidência de que a criminalidade assumiu, de fato, proporções que colocam o país, como também disse o general Cardoso, à beira de um curto-circuito.
O lamentável é que o general não tenha exposto providências para tentar corrigir uma situação tão insustentável. É claro que não há soluções fáceis nem imediatas para todas as carências que levaram a segurança pública à beira do "curto-circuito".
Mas é indispensável lembrar que segurança pública era um dos cinco dedos da mão espalmada que o então candidato Fernando Henrique Cardoso usou como símbolo de suas prioridades, na campanha eleitoral de 1994. Quase cinco anos depois, seu próprio chefe do Gabinete Militar admite que a situação apenas se deteriorou de lá para cá.
É, pois, urgente que os governos (o federal e, em especial, os estaduais, responsáveis diretos) dêem consequência ao duro diagnóstico e passem a trabalhar com sentido emergencial para, pelo menos, atenuar as carências do aparelho policial.
É verdade que a crise social só contribui para tornar ainda mais dramático o quadro de violência. Mas, sem polícias mais eficientes, mesmo que se consiga o impossível (eliminar as carências sociais), a sensação de insegurança provavelmente continuará produzindo curto-circuito no psiquismo coletivo brasileiro.
O MODELO QUE FALIU
CLÓVIS ROSSI
São Paulo - "Temos três vezes mais pobres do que a renda "per capita" nos autoriza." Palavra de Roberto Borges Martins, que não é da oposição, mas presidente de um instituto do próprio governo (o Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Culpa de FHC? Sim e não.
Tudo somado, dá até para dizer que não é o modelo FHC que faliu, mas um modelo bem mais antigo. Se fosse apenas uma falência social, já seria demais para o meu gosto. Mas é também uma falência econômica. Algum dia alguém dirá que o excesso de pobres, em relação às condições de desenvolvimento relativo do país, deveria ser incluído no "custo Brasil".
É impossível que um país se desenvolva de forma sustentada carregando um lastro de pobres tão formidável (de 33% a 34% da população, quando deveriam ser apenas 10%). É a mesma coisa que um avião tentar decolar com excesso de peso. Ou cai ou não vai tão longe quanto poderia.
A conclusão inescapável é a de que a discussão "monetaristas" x "desenvolvimentistas" se mostra não apenas pobre como insuficiente. O que está errado é o modelo político brasileiro, feito para perpetuar a desigualdade em benefício de uns poucos, aliás os mesmos que se revezam no poder até onde a memória alcança (e a minha, aos 56 anos, alcança bem longe).
Não adianta, pois, queimar Pedro Malan na fogueira, esperar que Alcides Tápias justifique o nome do ministério que ocupa desde ontem ou gritar "fora, FHC". O problema é muito mais profundo, as cabeças que precisam ser decapitadas (metaforicamente, é claro) são muitas mais.
MÁ VONTADE
VALDO CRUZ
Brasília - O presidente Fernando Henrique Cardoso vive reclamando do que chama de má vontade da imprensa (parte dela, é claro) com o seu governo. Costuma dizer que muitas críticas são infundadas.
Lendo a reportagem de ontem nesta Folha que mostra que o ajuste fiscal cortou a distribuição de cestas básicas para 8,6 milhões de pessoas em julho e agosto, ouso perguntar ao presidente: afinal, quem tem má vontade?
O presidente deveria é agradecer à imprensa quando ela revela casos como esse, quando a tesoura de um tecnocrata insensível segura a liberação de verbas destinadas a pessoas que vivem em bolsões de pobreza.
Será que, num quadro de desemprego como o atual, não dá para cortar em outra área? Não. O tecnocrata simplesmente faz um corte linear, não consegue vislumbrar o que existe por trás daqueles programas que são vítimas de sua frieza fiscal.
Não sou daqueles que questionam a necessidade do ajuste fiscal. Defendo que o governo viva dentro de sua realidade, sem gastar mais do que arrecada. Concordo que essa é a base do crescimento sustentado.
Mas fica difícil concordar com essa política burra. Duvido que R$ 100 milhões comprometam o ajuste pedido pelo FMI (Fundo Monetário Internacional); é dinheiro suficiente para bancar o programa de distribuição de cestas básicas nos bolsões de pobreza do país.
De duas uma: ou é incompetência ou má vontade de algum tecnocrata com o brasileiro. Depois os assessores do presidente ficam perguntando por que a popularidade de FHC caiu tanto nos últimos tempos.
Alcides Tápias assumiu prometendo paz. Mas o tom de seu discurso mostrou que ele não pretende ser apenas um apêndice do Ministério da Fazenda de Pedro Malan
AFINAL, QUEM É FHC?
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Não mais se deve perguntar que tipo de presidente FHC está sendo, mas o tipo de homem que ele é. Após um mandato desastroso, em que arrancou do Congresso tudo o que queria (a emenda da reeleição, por exemplo) e tudo o que o FMI exigia para lhe dar sustentação, ele se desaperta culpando os congressistas pelo buraco em que ele próprio se meteu e meteu o país.
O Congresso até foi dócil demais nos primeiros quatro anos de seu governo.
Bem verdade que a docilidade foi azeitada com subornos, como no caso da emenda da reeleição. E negociada não se sabe como nem por quanto nos momentos de crise, em que uma CPI poderia bagunçar o coreto do seu governo, como bagunçou o de Collor.
Ele próprio, a cada reforma obtida à custa de concessões que ainda estamos pagando e vamos pagar por muito tempo, era o primeiro a declarar que "agora, sim", o Brasil é um país moderno e tudo será resolvido.
Vendeu-se tudo o que não se podia vender, submeteu-se a soberania nacional aos interesses dos especuladores internacionais, criou-se uma moeda de fancaria que sucateou a indústria nacional, provocou a falência de empresas e jogou milhões de brasileiros na miséria do desemprego.
O resultado é que FHC, como presidente, atingiu a taxa mais baixa de aprovação popular. E o homem que está dentro dele revela-se tão despreparado no infortúnio como foi arrogante no macetado triunfo de outros tempos.
Falta-lhe um tesoureiro para convencer as pessoas que ele julga certas a lhe render a vassalagem. Sua decantada capacidade de convencer os outros -tão louvada pelos colunistas que o admiram- revelou-se inútil. No momento, ele nem se convence a si próprio de que é um fracasso.