Ano XXVI - 21 de novembro de 2024

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GLOBALIZAÇÃO = EXCLUSÃO SOCIAL + CONCENTRAÇÃO DE RENDA



GLOBALIZAÇÃO = EXCLUSÃO SOCIAL + CONCENTRAÇÃO DE RENDA

(título de Américo Parada)

FOLHA DE SÃO PAULO, Domingo, 16 de agosto de 1998.

GILSON SCHWARTZ - da Equipe de Articulistas

  • O economista Celso Furtado traça um panorama do cenário global e defende que a imaginação política deverá se sobrepor às diretrizes econômicas para enfrentar a crescente exclusão social e a concentração de renda

O DESAFIO FUTURO - CELSO FURTADO

  • Prevalece neste fim de século a tese de que o processo de globalização dos mercados há de se impor no mundo todo, à revelia da política que este ou aquele país venha a seguir; trata-se de um imperativo tecnológico
  • O tripé que sustentou o sistema de poder dos Estados nacionais está abalado, em prejuízo das massas trabalhadoras organizadas e em proveito das empresas que controlam as inovações tecnológicas
  • Desajustamentos causados pela exclusão social de parcelas crescentes de população emergem como o mais grave problema em sociedades pobres e ricas

O ANJO E A HISTÓRIA - MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE - especial para a Folha

  • O historiador britânico Quentin Skinner, que se diz não-marxista, defende o pensamento de Marx como crítica às injustiças do capitalismo


Folha de São Paulo, Domingo, 16 de agosto de 1998

O economista Celso Furtado traça um panorama do cenário global e defende que a imaginação política deverá se sobrepor às diretrizes econômicas para enfrentar a crescente exclusão social e a concentração de renda

Por GILSON SCHWARTZ da Equipe de Articulistas

Celso Furtado tem duas notícias: uma boa e a outra, má. A boa notícia é que a globalização existe mesmo (há quem duvide). É uma nova fase da história das civilizações, com promessas e desafios. Agora, a má notícia: nem mesmo o velho mestre do estruturalismo latino-americano sabe no que vai dar. Para os trabalhadores, pode piorar antes de melhorar.

O panorama do cenário global, escrito pelo economista Celso Furtado, foi apresentado no seminário internacional "Modelos e Políticas de Desenvolvimento - Um Tributo a Aníbal Pinto", co-promovido pelo Banco InterAmericano de Desenvolvimento (BID), pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal, das Nações Unidas) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), nos dias 22 e 23 de junho último.

Furtado, que neste mês lança um novo livro ("O Capitalismo Global", Ed. Paz e Terra/Academia Brasileira de Letras), é também um economista obcecado. Sua obsessão é a hipótese de uma visão latino-americana da economia mundial. Uma combinação de "Vidas Secas", Marx e Keynes.

O pequeno texto, que resume o estado atual da globalização e a inserção problemática dos países mais pobres na nova ordem mundial, concentra lógica cartesiana e consciência histórica.

Há uma batalha ideológica de fundo contra os modelos de equilíbrio e contra as visões lineares, simplificadoras ou positivas da história. Walt W. Rostow, economista norte-americano que inventou nos anos 50 um modelo de desenvolvimento econômico em cinco etapas, é invocado já no primeiro parágrafo.

Não há uma linha evolutiva que seria percorrida por todas as economias, sucessivamente. Como dizia o revolucionário Leon Trotsky, o desenvolvimento capitalista é "desigual e combinado".

A Cepal, em oposição às visões de equilíbrio e evolução linear, concentrou as atenções sobre os fenômenos de desigualdade, assimetria e assincronia.

Surgia, no início dos anos 50, uma visão aparentemente latino-americana (a rigor, fortemente influenciada pelas obras de Marx e Keynes, entre outros pensadores sociais "heterodoxos").

Era o estruturalismo, que analisa o crescimento econômico e a inflação, destacando a importância de fatores não-econômicos (regimes de propriedade da terra, composição dos grupos empresariais, capacidade de desenvolvimento tecnológico autônomo, condições sociais, grau de organização dos trabalhadores etc.).

De Marx, os estruturalistas latino-americanos, com destaque para Furtado, adaptam a idéia de exploração e projetam luz sobre a acumulação de riquezas. Como toda acumulação é por definição o oposto de distribuição, Furtado faz da questão do "excedente" o ponto central da luta política e intelectual que dá sentido à economia. A sua lição maior está num alerta: os mecanismos que parecem puramente econômicos, num país ou em escala global, são na realidade instrumentos de força de uma classe social.

A Cepal foi apenas o ponto de partida. Embora criticassem a visão convencional, estática, procurando desnudar os mecanismos da desigualdade entre as nações, a primeira geração de cepalinos acabou formulando uma alternativa voluntarista de desenvolvimento econômico. A ação do Estado seria a alavanca da superação do atraso.

Na prática, a intervenção estatal foi crucial na promoção do desenvolvimento econômico em vários países da América Latina, a começar pelo Brasil. A industrialização foi promovida a ferro e fogo, a urbanização ampliou dramaticamente os mercados de consumo, a participação política de trabalhadores influiu decisivamente nos rumos do país. Entretanto, 50 anos depois das primeiras formulações utópicas do desenvolvimentismo cepalino, a desigualdade, a assimetria e a concentração do poder continuam aumentando, no país e no mundo.

A industrialização, sem políticas educacionais, científicas e tecnológicas, ajudou a desenvolver o país, mas a superação do atraso ficou para as calendas.

A urbanização desde cedo criou novas formas de populismo e os coronéis da política de currais eleitorais apenas foram "modernizados". No lugar de um "big bang" da civilização urbana brasileira, o que se viu foi a expansão do universo de "bang bang", onde a manipulação fascista das massas convive com a criminalização das favelas e a "ratanização" da cidadania. Finalmente, o ideal de desenvolvimento nacional apenas deu lugar a amálgamas sucessivos e superpostos entre elites locais e estrangeiras.

Das utopias cepalinas e furtadianas, pouco sobrou. O texto a seguir, ao condensar "o processo histórico de formação econômica do mundo moderno", é um apelo humanista em favor de alguma utopia. Paradoxalmente, ao terminar seu texto, Furtado diz que se equivoca "quem imagina que já não existe espaço para a utopia", mas deixa apenas quatro linhas para dizer o que ela seria. É uma réstia de esperança, enquanto, frustrados, contemplamos os desafios futuros desenhados pela imaginação de Furtado.



Folha de São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

O DESAFIO FUTURO

Por CELSO FURTADO

Uma reflexão sobre o legado que nos deixou a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) deve partir do reconhecimento de que ela constituiu o único esforço de criação de um corpo de pensamento teórico sobre política econômica surgido na vasta área do planeta que veio a ser referida como Terceiro Mundo. Esse trabalho de teorização se desdobrou em duas frentes.

Em primeiro lugar, está a visão global da estrutura da economia mundial a partir da dicotomia Centro-Periferia, que nos permitiu captar a especificidade do subdesenvolvimento e superar a doutrina rostowiana das etapas do crescimento, a qual ignorava as diferenças qualitativas entre estruturas desenvolvidas e estruturas subdesenvolvidas.

Em segundo lugar, está a percepção do sistema de poder subjacente à economia mundial, o que permitiu explicar a tendência à degradação dos termos de intercâmbio dos produtos primários nos mercados internacionais. Trata-se, em verdade, de uma teoria do efeito de dominação, que está na origem da dependência a que se referiram em etapa posterior os economistas latino-americanos.

Essas duas idéias iluminam de ângulos diversos o fenômeno do poder nas estruturas econômicas mundiais, fato praticamente ignorado pelas teorias econômicas convencionais que privilegiam a idéia de equilíbrio. A Cepal representou, portanto, um esforço de restauração da economia como ramo da ciência política, o que se explica pela influência de Keynes sobre Prebisch e de Marx sobre alguns dos jovens cepalinos de maior valor.

A análise que se segue das transformações da economia mundial se funda na visão histórico-estrutural que emergiu dos trabalhos iniciais da Cepal, para os quais colaborou de forma substantiva Aníbal Pinto Santa Cruz.

O processo histórico de formação econômica do mundo moderno pode ser observado de três ângulos: 1) a intensificação do esforço acumulativo mediante a elevação da poupança de certas coletividades; 2) a ampliação do horizonte de possibilidades técnicas; e 3) o aumento da parcela da população com acesso a novos padrões de consumo.

Não se trata de três processos distintos, e sim de três faces em interação de um só processo histórico. É fácil perceber que, sem as inovações técnicas, não iria muito longe o aumento da poupança e que a ampliação do poder de compra da população era elemento essencial para a reprodução dinâmica do sistema.

Neste fim de século prevalece a tese de que o processo de globalização dos mercados há de se impor no mundo todo, independentemente da política que este ou aquele país venha a seguir. Trata-se de um imperativo tecnológico, semelhante ao que comandou o processo de industrialização que moldou a sociedade moderna nos dois últimos séculos.

Ora, a imbricação dos mercados e o subsequente debilitamento dos atuais sistemas estatais de poder que enquadram as atividades econômicas estão gerando importantes mudanças estruturais que se traduzem por crescente concentração da renda e por formas de exclusão social que se manifestam em todos os países. Essas consequências adversas, há mesmo quem as apresente como precondições de uma nova forma de crescimento econômico cujos contornos ainda não estão definidos.

Sendo assim, neste fim de século o crescimento econômico passa a ter como contrapartida o nascimento de uma nova forma de organização social que redefine o perfil de distribuição da renda. Pode-se enxergar nessa observação simples uma ameaça ou um desafio. Quando nada, o prenúncio de uma era de incertezas.

Se refletirmos sobre a primeira Revolução Industrial, verificamos que ela também criou desemprego, muito em especial no setor agrícola, o qual empregava tradicionalmente mais de dois terços da massa trabalhadora. Ora, o desenvolvimento só é efetivo se a economia pode contar com mercados em expansão. Portanto, caberia explicar de que maneira os mercados se ampliaram no quadro de uma revolução tecnológica que iria gerar a retração da demanda de mão-de-obra e da renda da massa dos trabalhadores. Sabemos que num primeiro período as empresas dos países que lideravam a Revolução Industrial forçaram a abertura dos mercados externos, o que explica a ofensiva imperialista que prosseguiu durante o século 19. Contudo, o verdadeiro motor desse crescimento econômico não foi tanto o dinamismo das exportações, e sim a expansão dos mercados internos, possibilitada pelo aumento do poder de compra do conjunto da população assalariada.

Por isso é que, para entender a lógica da civilização industrial, deve-se antes de mais nada encontrar uma explicação para o processo de aumento do poder de compra da população, ou seja, para a expansão da massa dos salários. Ora, tal explicação ultrapassa necessariamente o quadro da análise econômica convencional, dado que a repartição da renda é comandada por fatores de natureza institucional e política.

Com efeito, se a lógica dos mercados tivesse prevalecido sem restrições, tudo leva a crer que a internacionalização das atividades econômicas (o processo de globalização) teria se propagado muito mais cedo, reproduzindo, numa versão ampliada, a experiência da Inglaterra, onde a participação do comércio externo na renda nacional ultrapassou 50% já nos anos 70 do século passado. Daí resultaria uma menor concentração geográfica das atividades industriais, favorecendo os países da periferia. Além do mais, neste caso seria de esperar que houvesse uma concentração social da renda ainda mais forte nos países que lideravam a revolução industrial.

Mas a história não seguiu esse modelo. Prevaleceu, na verdade, uma maior concentração geográfica das atividades industriais em benefício dos países do Centro e uma repartição de renda mais igualitária nesses mesmos países - os quais comandavam a vanguarda tecnológica -, o que implicou a adoção de políticas de proteção social.

Encontramos a explicação desse quadro histórico na emergência das novas forças sociais que nasceram simultâneas ao processo de urbanização gerado pela industrialização. A evolução do sistema de poder, consequência da ação dos trabalhadores organizados, acarretou a elevação dos salários reais e impôs aos governos políticas protecionistas para defender seus respectivos mercados internos. Dessa forma, a partir de então o motor do crescimento foi a ampliação do mercado interno, as exportações só contribuindo de maneira subsidiária.

O aumento do poder de compra da massa dos trabalhadores desempenhou, portanto, um papel primordial no processo de desenvolvimento, ao qual só foi comparável o da inovação técnica. O dinamismo da economia capitalista derivou, assim, da interação de dois processos: de um lado, a inovação técnica - a qual se traduz em elevação da produtividade e em redução da demanda de mão-de-obra -, de outro, a expansão do mercado - que cresce junto com a massa dos salários. O peso do primeiro desses fatores (a inovação técnica) depende da ação dos empresários em seus esforços de maximização de lucros, ao passo que o peso do segundo (a expansão do mercado) reflete a pressão das forças sociais que lutam pela elevação de seus salários.

O processo atual de globalização a que assistimos desarticula a ação sincrônica dessas forças que garantiram no passado o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais. Quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos empresários tendem a fugir do controle das instâncias políticas. Voltamos assim ao modelo do capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e nos investimentos no estrangeiro.

Em suma, o tripé que sustentou o sistema de poder dos Estados nacionais está evidentemente abalado, em prejuízo das massas trabalhadoras organizadas e em proveito das empresas que controlam as inovações tecnológicas. Já não existe o equilíbrio garantido no passado pela ação reguladora do poder público. Disso resulta a baixa da participação dos assalariados na renda nacional de todos os países, independentemente das taxas de crescimento.

Ora, a crescente interdependência dos sistemas econômicos tornou obsoletas as técnicas que vinham sendo desenvolvidas nos últimos decênios para captar o sentido do processo histórico que vivemos. Multiplicaram-se os modelos ao impulso do avanço vertiginoso das técnicas de manipulação de dados. Mas a fiabilidade das projeções se reduziu a quase nada. Como exemplo, bastaria citar os exercícios realizados em torno das projeções do comércio internacional nos próximos anos a fim de comprovar o acerto dos acordos discutidos no antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio). Dezenas de milhares de equações foram tabuladas sem que se conseguisse dirimir nenhuma dúvida essencial. Daí que seja hoje em dia tão limitada a possibilidade de interferir nos processos macroeconômicos, como constatam os governos mais bem aparelhados, impotentes que são para enfrentar um problema como o desemprego.

Essa pouca transparência do acontecer em que estamos envolvidos reflete a intervenção de novos fatores e a mudança do peso relativo de outros, o que implica aceleração do tempo histórico. Os sistemas econômicos nacionais com grande autonomia, submetidos a choques externos apenas ocasionais, são coisa do passado. Os mercados fundamentais - de tecnologia, de serviços financeiros, de meios de comunicação, de produtos de qualidade e mesmo de bens de consumo geral, sem falar nas matérias-primas tradicionais- operam hoje unificados ou marcham rapidamente para a globalização.

Vejamos algumas das mudanças de mais relevo na configuração do quadro global:

O declínio da governabilidade das economias de maior peso relativo não se explica sem ter em conta a internacionalização dos mercados financeiros. O enorme desequilíbrio da conta corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos é uma fuga para a frente na busca de ajustar-se a essa globalização e se traduz em transferência para esse país de parte considerável da poupança disponível para investimento nos demais países, inclusive nos mais pobres. Tal situação está conduzindo a modificações importantes nas relações internacionais desse país, como exemplifica a recente criação da zona de livre câmbio, englobando os mercados dos Estados Unidos, Canadá e México. As indústrias norte-americanas poderão, assim, recuperar a competitividade internacional, pois os salários monetários no México não passam de uma décima parte dos que prevalecem nos Estados Unidos. A experiência de integração com o México, excluindo a mobilidade da mão-de-obra, servirá de paradigma a um projeto mais amplo, capaz de abranger todo o hemisfério.

A União Européia nasceu por iniciativa da França, tendo como principal objetivo promover um entendimento político consistente com a Alemanha. Quatro decênios depois, deu origem a um formidável projeto de engenharia política. Pela primeira vez, um grupo significativo de países soberanos e com perfil cultural próprio abdicam de prerrogativas nacionais para se integrar política e economicamente. No passado, a integração de populações se fez pela dominação de um mais forte sobre muitos. O processo europeu está exigindo um exercício de imaginação política para conciliar o ressurgimento de valores locais e rivalidades culturais com as exigências crescentes de um espaço econômico unificado de dimensões colossais. A União Européia, concebida no passado como projeto político - para fazer face à suposta ameaça soviética e para enterrar as rivalidades históricas -, adquiriu um impulso considerável no plano econômico, sendo de longe a mais importante experiência de superação do Estado nacional como meio de disciplinar a convivência humana num quadro democrático.

O processo de conversão à economia de mercado e de criação de instituições democráticas nos países do Leste Europeu resultou ser muito mais traumático do que se havia imaginado. Tudo leva a crer que esse processo será particularmente longo na Rússia, que enfrenta as dificuldades de reconstrução de um vasto espaço político de grande heterogeneidade étnica e cultural. É provável que durante um ou dois decênios a Rússia permaneça marginalizada -um mundo à parte, devendo inventar o formato político que permita conciliar suas tradições autoritárias com as reivindicações de convivência democrática que predominam hoje em uma classe média que se diferencia crescentemente. Não obstante seu imenso potencial de recursos, inclusive de gente qualificada, tudo indica que a Rússia desempenhará papel de pouco relevo na configuração do mundo nos albores do próximo século.

As nações asiático-orientais, em particular a China, são hoje, sem lugar a dúvida, os líderes da nova onda de transformações que estão redefinindo a face do planeta. Liderados pelo Japão, esses países ganharam autonomia no domínio das técnicas e põem a serviço destas uma grande disciplina social. Os salários são regulados em função das exigências da concorrência internacional. A estrita disciplina social e o forte investimento no fator humano dão ao capitalismo asiático uma força competitiva sem paralelo. Dadas as formidáveis reservas de mão-de-obra de que dispõem, tudo indica que eles virão a pesar crescentemente nos mercados mundiais. A barreira contra essa invasão poderá surgir de novas formas de organização dos mercados que introduzam a discriminação de produtos. As áreas em que a concorrência se faz pelos preços serão cada vez mais circunscritas. A crise das bolsas, de fins de 1997, serviu para evidenciar o peso que o Oriente asiático já tem na economia mundial e a importância dos investimentos realizados nessa região para o dinamismo das economias ocidentais, ao mesmo tempo que pôs a nu a imaturidade de suas classes dirigentes.

As economias latino-americanas estarão submetidas a pressões crescentes para desregular os seus mercados, o que acarretará efeitos diversos em função do grau de heterogeneidade de suas estruturas sociais. Se não conseguirem deter o processo de concentração da renda e de exclusão social, países como o Brasil e o México estarão expostos a tensões sociais que poderão conduzi-los à ingovernabilidade. A busca de novos modelos de desenvolvimento voltados para a economia dos recursos não-renováveis e para a redução do desperdício ocupará entre os latino-americanos papel idêntico ao desempenhado entre os europeus, na primeira metade do século atual, pelas utopias sociais. Eliminadas as tarifas alfandegárias como instrumento de política comercial e progressivamente unificado o mercado financeiro - o custo da transferência internacional de capitais tende a zero -, temos uma nova fase do desenvolvimento capitalista cujos contornos ainda se estão definindo.

Podemos assinalar alguns pontos do perfil que se esboça. Os desajustamentos causados pela exclusão social de parcelas crescentes de população emergem como o mais grave problema em sociedades pobres e ricas. Esses desajustamentos não decorrem apenas da orientação assumida pelo progresso tecnológico, pois também refletem a incorporação indireta ao sistema produtivo da mão-de-obra mal remunerada dos países de industrialização retardada, em primeiro plano os asiáticos. A globalização em escala planetária das atividades produtivas leva necessariamente a grande concentração de renda, contrapartida do processo de exclusão social a que fizemos referência.

Os novos desafios, portanto, são de caráter social, e não basicamente econômico, como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo. A imaginação política terá assim que passar ao primeiro plano. Equivoca-se quem imagina que já não existe espaço para a utopia. Ao contrário do que profetizou Marx, a administração das coisas será mais e mais substituída pelo governo criativo dos homens.



Folha de São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

O ANJO E A HISTÓRIA

Por MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE - especial para a Folha

O historiador britânico Quentin Skinner, que se diz não-marxista, defende o pensamento de Marx como crítica às injustiças do capitalismo

Desde outubro de 1997 a Universidade de Cambridge tem um novo "regius professor" em história: Quentin Skinner. A nomeação (feita diretamente pela rainha Elizabeth) para essa prestigiosa cátedra criada no século 18 pelo rei George 2º representa a coroação da carreira rápida e brilhante que Skinner ali iniciou aos 21 anos de idade.

Sua escolha para a cadeira de ciência política da mesma universidade, em 1978, já representara o reconhecimento de sua contribuição para a metodologia e prática da história das idéias em geral e da filosofia política em particular. Desde o fim dos anos 60, seus primeiros artigos já anunciavam um pensamento polêmico e inovador e atraíam reações tanto altamente positivas quanto desfavoráveis.

O "reinado" de Skinner, segundo alguns, já teria se iniciado nos anos 70, quando seus estudos históricos sobre as idéias políticas do Renascimento e suas reflexões filosóficas e metodológicas passaram a nortear um debate extremamente enriquecedor e frutífero, que ultrapassou as fronteiras do mundo anglo-americano.

O livro "The Foundations of Modern Political Thought" (As Bases do Pensamento Político Moderno), publicado em 1978 e premiado com o Wolfson Literary Award, consolidou o papel de Skinner como referência obrigatória na historiografia das idéias políticas, o que foi referendado pela repercussão de uma série de artigos inovadores e provocantes e pelo sucesso de seu pequeno livro sobre Maquiavel (1981) e de seu mais recente e substancioso trabalho sobre Hobbes, "Reason and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes" (Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1996).

Além das qualidades intelectuais, o que deve ter contribuído para que Skinner fosse escolhido para ocupar o mais alto posto na hierarquia acadêmica britânica foi o fato de ele ser o que se pode chamar de um autêntico "Cambridge man".

Tendo iniciado seus estudos em 1959 como aluno do Caius College (um dos 31 "colleges" da Universidade de Cambridge) e entrado na carreira universitária três anos depois, como membro de outro college renomado, o Christ's -instituição fundada em 1442, a que pertenceu o autor de "Paraíso Perdido", John Milton-, Skinner é considerado um cambridgiano devotado ao espírito e às regras dessa universidade quase milenar. Sua identificação com Cambridge chega ao ponto de alguns colegas pensarem ser ele o inspirador do personagem principal de um romance policial (nada bom, aliás) que retrata alguns aspectos da vida dessa cidade universitária.

Assoberbado com as tarefas administrativas que acompanham o novo posto e com o atendimento dos muitos estudantes que o procuram, haja vista sua fama de professor dedicado, Skinner não titubeou, entretanto, em conceder esta entrevista à Folha.

No belo conjunto de salas que ocupa no Christ's College, discorreu longamente sobre sua obra, seus críticos, sua metodologia, seus interesses, sua visão sobre o marxismo, a idéia de liberdade, as tendências historiográficas da atualidade etc.

Extremamente simpático e gentil, ao mesmo tempo que formal e sério, Skinner impressiona pela fluência e entusiasmo com que fala sobre seus temas de estudo. A meticulosa ordem dos papéis, livros e objetos de sua sala parece se reproduzir na ordem e clareza de suas idéias. Sua fala rápida e articulada, sem digressões ou hesitações, não difere muito da prosa elegante e límpida que caracteriza sua obra histórica e filosófica. Fazendo uma analogia entre a destreza da fala de Skinner e o conceito de "atos linguísticos", central em sua teoria da interpretação, um de seus colegas comentou brincando: "Quando fala, Skinner dá a impressão de ser um computador programado para produzir "atos linguísticos' de grande força e impacto".

Folha - O que o motivou a se tornar historiador do pensamento político?

Quentin Skinner - A pessoa que primeiramente me motivou foi um excelente professor que tive na escola secundária e que me fez ler vários textos clássicos de teoria política inglesa. Foi com ele que trabalhei pela primeira vez com a "Utopia" de Thomas More e com o "Leviatã" de Hobbes. A partir daí meu interesse foi estimulado pelo excelente ensino que tive em Cambridge, especialmente na área de história intelectual. Fui especialmente influenciado por duas pessoas durante o meu curso de graduação: por John Burrow, então em início de carreira (e atualmente professor de Oxford), que foi o tutor que me ensinou de forma mais incrivelmente estimulante e desafiadora; e por Peter Laslett, que me impressionou pelas suas aulas magistrais e pela sua nova edição do "Two Treatises of Government" (Dois Tratados sobre o Governo), de John Locke, edição que representou um novo marco no estudo do pensamento político. Os textos de Locke haviam sido até então vistos como uma justificação da Revolução Gloriosa de 1688 e como uma celebração da monarquia constitucional. O que Laslett conseguiu provar com suas descobertas foi que isso não era absolutamente verdade, pois Locke os havia escrito dez anos antes da Revolução, durante a ascensão do absolutismo de Carlos 2º. O que particularmente me impressionou no trabalho de Laslett foi sua insistência de que não deveríamos pensar em um texto isolado das circunstâncias em que surgiu. No caso de Locke, seus textos haviam, de fato, se tornado as obras fundadoras do constitucionalismo britânico, mas sua identidade histórica nada tinha a ver com isso. Locke, ao escrevê-los, estava se dirigindo a um outro período e com outras questões em mente.

Folha - Seus críticos já o descreveram como idealista, materialista, positivista, relativista, historicista e até mesmo como um "simples metodólogo". Como o sr. se descreveria?

Skinner - Isso não é fácil. De todos esses títulos, o que eu menos rejeitaria é o de relativista, mas só se isso for entendido como sendo diferente de um relativista conceitual, que renego totalmente. O que quero dizer é que, no meu entender, os historiadores que se interessam por compreender culturas em que as práticas e crenças são muito diferentes das suas próprias, são, em certo sentido, relativistas suaves. Eles vêem seu projeto como sendo o de penetrar em uma cultura diferente e tentar traduzir os termos dessa cultura de um modo que é, ao mesmo tempo, fiel a ela e inteligível para outras. Quanto aos demais títulos, eu diria que sempre estive interessado na tradição idealista de filosofia e que todos os meus heróis vêm de um tipo de tradição britânica antipositivista. Um dos autores que mais influenciaram diretamente minha prática teórica como historiador foi Collingwood, e, se ele era um idealista, então eu também não rejeitaria esse título. No entanto, o que gostaria é de me descrever de acordo com o título que dei para uma coleção de história intelectual que editei para a Cambridge University Press: "Idéias em Contexto". Ou seja, intertextualidade e contexto são meus maiores interesses. Eu diria, portanto, que sou um autor que aborda a história intelectual de um modo intertextualista e contextualista.

Folha - Considerando a importância que dá às intenções do autor para recuperar a identidade histórica de um texto, o sr. poderia falar um pouco sobre sua próprias intenções ao escrever o que parece ser seu manifesto de 69, "Meaning and Understanding in the History of Ideas" (Significado e Entendimento na História das Idéias)? A questão básica de toda a sua obra poderia ser localizada aí?

Skinner - Sim, sem dúvida o que você chama acertadamente de meu manifesto tem norteado todo o meu trabalho. Tive imensa dificuldade em publicá-lo, várias revistas o rejeitaram, e foi só após dois anos que acabou sendo aceito por "History and Theory". É verdade que foi escrito para chocar e irritar, o que conseguiu. Jamais escreveria daquela forma hoje em dia, mesmo porque deixou de ser necessário combater o que então combati. O artigo tinha dois alvos: solapar duas abordagens de história intelectual. Não queria simplesmente dizer que eu tratava o assunto de forma diferente, mas sim mostrar que aquelas abordagens eram totalmente equivocadas. A primeira delas era a que acreditava que os textos filosóficos estavam numa espécie de eterno presente e que eram matéria auto-suficiente, bastando uma análise textual para os entender. O que tentei foi argumentar que há muitas coisas importantes sobre os textos que precisam ser estudadas, além dos próprios textos, se se quiser efetivamente compreendê-los. Caso contrário não seria possível compreender quais haviam sido suas motivações, ao que eles se referiam e se estavam, por exemplo, satirizando, repudiando, ridicularizando ou aceitando outras idéias e argumentações. O segundo alvo que meu "manifesto" procurava atingir era a tradição marxista da história intelectual, o que se tornava então mais necessário devido à recente publicação de uma brilhante interpretação marxista da teoria política do século 17, "The Political Theory of Possessive Individualism" (1964), de C.B. Macpherson. Apesar da grande perspicácia com que os textos de Hobbes e Locke eram ali estudados, o que me perturbou muito foi a idéia de que esses autores inevitavelmente refletiam a estrutura social, já que esta é geradora de doutrinas. Mas creio que não fui muito feliz em explicar o que não me agradava nessa visão.

Folha - O sr. rejeita o marxismo em bloco ou vê algum valor no trabalho de Marx e de alguns de seus seguidores?

Skinner - Não só não rejeito o marxismo em bloco como acho lamentável que a teoria social contemporânea o tenha desacreditado tão integralmente. Mas, dada a sua importância, gostaria de falar mais longamente sobre três aspectos dessa filosofia social que foram tremendamente importantes e valiosos para mim. O primeiro é o aspecto metodológico. Acredito que todos nós em nossa sociedade internalizamos a essa altura um pressuposto fundamental dessa metodologia, isto é, que o ser social determina a consciência em algum nível e num certo grau. É claro que o problema surge quando queremos determinar o grau e o nível exatos dessa determinação. O segundo aspecto diz respeito ao marxismo como filosofia e a pertinência de seu diagnóstico social. Não se pode negar que ele nos forneceu vocabulário e conceitos explanatórios valiosos para falarmos sobre as relações sociais de qualquer sociedade. Ninguém hoje se poria a investigar seriamente uma sociedade, quer passada ou presente, sem empregar conceitos marxistas como alienação e exploração. O terceiro aspecto, decorrente desses, é que nunca certas previsões do marxismo pareceram mais verdadeiras do que hoje; o que não deixa de ser bastante irônico, se considerarmos que isso se dá no momento em que o marxismo está desacreditado como filosofia social. Marx não estava, obviamente, pensando em escala global, mas o relacionamento do Primeiro com o Terceiro Mundo -com os ricos ficando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres-, exatamente pelos problemas de exploração do capital que apontou, é um desafio cada vez mais sério para o novo milênio. Mas, tendo dito isto, devo confessar que, se não me considero um antimarxista, vejo-me, entretanto, como um não-marxista. De um lado, porque me oponho frontalmente à sua teoria da ideologia e não considero que as crenças, especialmente as crenças religiosas, sejam epifenômenos, isto é, produtos de circunstâncias sociais. Nos meus primeiros escritos quis exatamente me opor a um tipo particular de marxismo, extremamente poderoso então (praticado por grandes historiadores, como Christopher Hill e Macpherson), e identificar o erro desta concepção. De outro, porque o positivismo dessa filosofia a torna antiquada e inadequada para o estudo do mundo social. Marx ainda habita um mundo em que há consciências verdadeiras e falsas. Mas, numa cultura pós-moderna, em que todas as consciências são vistas como construções, a questão que nos parece hoje pertinente é como negociá-las, já que todas elas podem ter alguma contribuição a dar ao mundo social. E, nesse caso, a tarefa histórica é descobrir a racionalidade dessas construções estudando-as internamente. Ora, o "verdadeiro-falso" da abordagem marxista não permite tal metodologia histórica. Finalmente, queria insistir que o que permanece como extremamente nobre e valioso no marxismo é seu diagnóstico do capitalismo. É verdade que descobrimos que esse é o sistema mais eficiente, talvez mesmo o único capaz de garantir prosperidade para um número imenso de pessoas. No entanto, há grandes custos humanos embutidos nessa eficiência. O fato de o comunismo ter sido desacreditado não significa que o capitalismo não seja também desacreditável. Ele continua a ser um sistema muito injusto, assim como o marxismo continua a ser um valioso instrumento crítico dessas injustiças.

Folha - O tipo de história intelectual que pratica já foi descrita como "uma revolução na historiografia do pensamento político". Quão revolucionária o sr. acha que sua abordagem realmente é?

Skinner - Na epígrafe a "Investigações Filosóficas", Wittgenstein diz que todos os avanços são menos importantes do que parecem. Acho que muitos historiadores da minha geração mudaram o modo de fazer história intelectual, mas é fácil verificar de onde eles estavam tirando suas idéias. Assim, não considero que fiz uma revolução. É verdade que quando comecei minha carreira havia pouquíssimos historiadores exemplares. Devo lembrar dois nomes, no entanto, que me serviram de modelo. Collingwood era um de meus heróis e desde que li sua autobiografia no colegial fiquei profundamente impressionado por ele. Quando comecei a pesquisar achei fascinante seguir sua idéia de que todos os trabalhos de arte, que inclui também filosofia e literatura, são objetos intencionais e que comprendê-los significa compreender os propósitos que os sustentam. Estes não estão escritos na superfície da pintura ou do texto, mas é parte da tarefa hermenêutica tentar descobri-los. Collingwood foi, portanto, exemplar com sua abordagem teórica. Outro pensador que me foi exemplar foi John Pocock, que parecia ser Collingwood posto em ação, praticando tudo aquilo que a teoria deste pregava. Assim, se parece que houve uma revolução na historiografia da história intelectual, é porque, de fato, fora os textos de Pocock e Laslett, não havia nada mais de interessante produzido nessa área nos anos 50. E foi então, na minha época, que as coisas começaram a mudar.

Folha - Seu trabalho criou toda uma escola de seguidores, aqui e no estrangeiro, mas também, como o sr. mesmo diz, "um grupo constrangedoramente numeroso de críticos". Quão importantes têm sido esses críticos para o desenvolvimento de suas idéias?

Skinner - Há uma crítica a meu trabalho filosófico que me fez reconsiderar bastante minha posição sobre a teoria da interpretação. No livro editado por J. Tully, "Meaning & Context", uma das críticas mais recorrentes diz exatamente respeito à minha visão sobre interpretação, o que me fez perceber que não havia formulado meu pensamento tão cuidadosamente quanto deveria. Na introdução ao meu recente livro sobre Hobbes procurei, pois, reformular meu pensamento a fim de avançar o argumento e protegê-lo contra aquela crítica. Nunca pretendi negar a pertinência das críticas de Derrida à idéia de que os autores têm autoridade sobre seus próprios textos. O que sempre quis defender foi uma posição que é erroneamente confundida com o projeto tradicional da hermenêutica. Quando falo da intencionalidade dos autores não estou me referindo ao significado dos textos ou elocuções, mas, sim, ao significado do ato de escrever o texto ou proferir uma elocução. Na verdade, minha teoria da interpretação, diferentemente de outras teorias mais tradicionais, dá grande ênfase ao que chamo de atos linguísticos. Trata-se, neste caso, de saber o que o autor queria com o texto, o que significa também lidar com as intenções do autor, mas num sentido ao qual não se podem aplicar as críticas que me foram dirigidas. As críticas que sofri foram, pois, úteis para que eu percebesse mais claramente a importância da distinção a que me referi e para que eu tomasse consciência sobre aquilo que compartilho com os pós-modernistas e sobre o que é peculiar à posição que defendo.

Folha - O título de seu livro "The Foundations of Modern Political Thought" parece anunciar uma abordagem, por assim dizer, teleológica. No entanto, o texto em si se pretende um manifesto para um método contextualista. Como o senhor concilia esse dois aspectos aparentemente contraditórios?

Skinner - Essa metáfora apresenta, de fato, certas dificuldades, pois é inerentemente teleológica: fundações são fundações de estruturas. Há, pois, uma teleologia embutida no livro que me aborrece agora. Não escreveria desse modo se o fizesse hoje. Escrito nos fins dos anos 60 e início dos 70, este livro é, em certo sentido, datado. Na linha inaugurada pela visão weberiana da formação do Estado, tentava contar a história de como, da destruição da Europa feudal e católica, surgiu a idéia universalista de um Estado secular e pretensamente neutro. É verdade que foi também escrito à luz do meu "manifesto" de 69, procurando pôr aquela teoria (sobre a qual falamos antes) em prática. No entanto, admito que foi muito mais desenvolvimentista do que a teoria me permitia. Em minha defesa, todavia, devo dizer que, considerando a complicada transformação que queria estudar, a teleologia do meu título não me levou a escrever de um modo gravemente equivocado; mas me fez, sim, escrever sobre toda a tradição do neo-escolasticismo de um modo um tanto seletivo. É aí que reside, a meu ver, a maior fraqueza de meu livro. Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha história, esquecendo que havia outras histórias que eles contavam e que tratavam de questões cruciais para eles, como, por exemplo, as noções de império e justiça. Eu, portanto, os recrutei para uma história que não era a deles, e, nesse aspecto, meu livro violou meus próprios princípios. Mas, de um modo geral, acho que ele seguiu meus princípios e basicamente tentou entender os grandes textos do Renascimento a partir de seu próprio contexto intelectual. A metodologia antitextualista e pró-intertextualista que defendo em meu "manifesto" foi, acredito, bem ilustrada por grande parte de meu livro.

Folha - Seu livro sobre razão e retórica em Hobbes parece ter uma certa analogia com a interpretação de Starobinski sobre Rousseau como sendo um pensador que encontrou "o remédio no mal". O senhor concorda que a atitude de Hobbes em relação à retórica se explica de forma análoga?

Skinner - Nunca havia pensado sobre esse paralelo, mas o acho ótimo. Hobbes foi educado na tradição retórica como todos os que foram para a escola na Inglaterra elisabetana. Quando ele começou a se interessar pelas novas ciências e se encontrou com cientistas como Galileu e Mersenne, ficou seduzido pela idéia de que o método da ciência dedutiva poderia ser aplicado a todas as formas de investigação humana. Seu primeiro trabalho sobre a ciência civil, o "De Cive", reflete, no meu entender, seus compromissos científicos. Querendo que esta ciência se constituísse como um sistema fechado, completamente dedutivo, ele decide expô-la no estilo mais anti-retórico e simples possível. Mas, anos depois, percebe-se que Hobbes estava frustrado com a recepção de seu trabalho filosófico, especialmente do "De Cive", pois, segundo ele, a verdade de sua filosofia não conseguira persuadir ninguém. É nesse momento que, no meu entender, ele se pergunta se as técnicas persuasivas não poderiam ser postas a serviço da ciência. Sim, pensando sobre isso, de fato se pode dizer que essa sua nova percepção o fez tentar transformar a doença em parte do remédio. Nunca, na verdade, ele aprovou a arte retórica, que, com seu apelo às emoções, era a antítese do modelo matemático-geométrico que via como exemplar por apelar à razão. No fundo, ele detesta a retórica tanto quanto Platão e pelas mesmas razões expostas por Sócrates no diálogo "Górgias": a retórica é o oposto da educação, pois, enquanto esta é racional, a retórica é persuasão, isto é, completamente irracional. É, pois, premido pelo insucesso de seu estilo anti-retórico que Hobbes se dispõe a usar no "Leviatã" os métodos da persuasão como apoio para os métodos da razão. Recursos retóricos como o humor, a sátira e o ridículo -e que associam o "Leviatã" aos textos de grandes satiristas do Renascimento, como Montaigne e Rabelais- são, portanto, estratégias utilizadas por Hobbes para difundir a verdade de sua ciência civil.

Folha - Grande parte de seu trabalho parece girar em torno de dois pensadores políticos que são famosos como realistas cínicos: Maquiavel e Hobbes. Por que essa atração por eles e não por outros mais idealistas, como Locke ou Rousseau?

Skinner - Já pensei muito sobre isso e diria que há uma razão substantiva e outra metodológica que justificam esta minha opção. A substantiva é que, como historiador, eu tenho me interessado por figuras que não considero pessoalmente atraentes. Na verdade, faço questão de trabalhar sobre modos de pensar com os quais eu não tenho grande afinidade emocional, que vão contra a minha própria natureza. Essa é também uma atitude que procuro ter em meu próprio cotidiano. Por exemplo, assino a revista "The Economist" há bastante tempo, apesar de suas posições ideológicas me fazerem cuspir sangue toda vez que a leio. No entanto, insisto em assiná-la não só por considerá-la a revista da atualidade mais bem informada, mas também porque acho que irá me educar muito mais do que se eu somente lesse aquilo com que concordo. Já a razão metodológica para essa escolha recua à época em que descobri o trabalho de Peter Laslett sobre Locke e em que me impus o desafio de provar que, a despeito do que ele pensava, o que mostrara a respeito da obra de Locke poderia ser mostrado a respeito de qualquer outro trabalho de teoria política. Assim, iniciei meus estudos sobre Hobbes motivado pelo desejo de provar que havia um contexto polêmico e político imediato a ser explorado e que era aí que seriam encontradas as motivações de sua obra. Acredito ter, de fato, mostrado que ela surge como resposta à questão que se criara com a execução do rei Carlos 1º e a vitória da Revolução de Cromwell: um novo governo deve ser obedecido mesmo quando parece ser um governo usurpador?

Folha - Sua idéia de que o historiador deve ser "um anjo registrador e não um juiz condenador" parece supor que a neutralidade é atingível por aquele que diferencia seus papéis de homem e de intelectual. O sr. poderia falar sobre as dificuldades e conveniências dessa diferenciação? A neutralidade de um historiador é sempre uma qualidade desejável e positiva?

Skinner - Quando digo que a tarefa do historiador é a do anjo registrador quero dizer que sua aspiração deve ser a de recapturar o passado nos seus próprios termos, deixando de lado, no possível, as dúvidas pós-modernistas quanto à total viabilidade disso. No entanto, criticaria aqueles que, ao selecionar seu objeto de estudo, não se guiam pela consideração do que possa ser importante, quer no sentido moral, político ou cultural. O que quero dizer é que nossos valores devem nos motivar a escolher os assuntos que escolhemos estudar. Mas, uma vez feita a escolha, a recuperação do passado exige grande imparcialidade. Há um caso que provocou grande debate nos EUA nos anos 80 e que exemplifica o que quero dizer. Um jovem historiador de tendência marxista, chamado Abraham, argumentou que Hitler subira ao poder com a ajuda dos grandes capitalistas da República de Weimar; seus críticos, no entanto, afirmaram que para sustentar sua tese Abraham falsificara os documentos. Não pretendo corroborar essa crítica (já que o autor teve seus defensores), mas ilustrar o que está em jogo quando se confunde motivação com investigação imparcial. Evidentemente é da maior importância compreender como as democracias são destruídas e como elas são substituídas pela tirania. Assim, a investigação de como Hitler ascendeu ao poder tem uma motivação altamente honrosa e moral. Mas isso não significa que possamos entrar nos arquivos com o julgamento já feito, com a resposta já dada. A motivação deve, pois, ser mantida à parte do que os documentos dizem. Nesse ponto eu não sou tão pós-modernista a ponto de pensar que os documentos nos permitem dizer qualquer coisa. Considero que eles nos constrangem num alto grau: há neles silêncios e proposições, e estas não são suscetíveis de qualquer interpretação.

Folha - No seu último livro, "Liberty before Liberalism", os historiadores são aconselhados a se abster de qualquer manifestação de entusiasmo ou indignação, deixando isso para os leitores. No entanto, o sr. parece infringir suas próprias regras quando julga o ideal republicano de liberdade, com sua ênfase no dever, preferível às "formas libertárias do liberalismo contemporâneo", com sua obsessão pelos direitos e interesses individuais. Não seria justo dizer que, nesse caso, o leitor Skinner e o historiador Skinner se confundem?

Skinner - Sim, concordo que violei a distinção que advoguei entre motivação e prática. Gostaria, no entanto, de dizer em minha defesa que há dois modos diferentes de se escrever história. Há aqueles que estão motivados a encontrar no passado determinados valores e que se propõem a escavá-los à superfície. E há aqueles historiadores que se envolvem em investigações acadêmicas neutras, mas que, no decorrer de seus estudos, se deparam com estruturas de pensamento esquecidas que lhe parecem moralmente valiosas e merecedoras de serem escavadas e repensadas pela atualidade. Eu acredito que, no meu caso, essa preferência que manifestei resultou de uma pesquisa bastante imparcial que fiz sobre o desenvolvimento do republicanismo do Renascimento como pano de fundo para a compreensão de Maquiavel. Meu interesse inicial era entender os paradoxos históricos da idéia de liberdade, brilhantemente trabalhados pela teoria moral do Renascimento; logo, no entanto, me apaixonei por eles e passei a vê-los como profundamente instigantes ainda hoje. Assim, quando me pus a escrever sobre liberdade e cidadania estava motivado pelo desejo de apresentar a um público obcecado com noções de direitos e interesses, um quadro completamente diferente em que a idéia de dever era prioritária e em que o cidadão não era visto como um simples consumidor do governo.

Folha - Se, como afirma um de seus mentores, Collingwood, "toda história é história do pensamento", pois penetrar no interior dos eventos e detectar os pensamentos que eles expressam é o objetivo da história, o que distingue a história intelectual das demais?

Skinner - O que levou Collingwood a fazer tal afirmação foi a idéia, bastante correta, aliás, de que as ações humanas são o produto de pensamentos e motivações. No entanto, acho que ele exagerou ao afirmar que todos os historiadores estão interessados em ações. Muitos estão, na verdade, interessados em processos e não em ações, em correlações estatísticas e desenvolvimentos demográficos e não em eventos. No entanto, no que diz respeito à história intelectual sua proposição é bastante frutífera, mas de um modo que teria surpreendido o próprio Collingwood. Quando ele falou que toda história é história do pensamento eu acredito que ele pensava que, ao repensarmos o que os outros pensaram, poderíamos descobrir o que eles quiseram dizer. Ora, eu não acredito que seja tarefa do intérprete de um texto complexo descobrir as intenções do autor. Nesse ponto eu sou pós-modernista o suficiente para acreditar que um texto terá muitos outros significados, além do que autor possa ter intencionado. No entanto, outra coisa bem diferente e possível é descobrirmos o que o autor pretendeu fazer com o que disse. Nesse caso o que nos interessa é o que chamo de atos linguísticos. O que quero dizer é que um discurso, além de ter um significado, é também uma ação. Para os patinadores, por exemplo, a frase "o gelo lá está muito fino", além de ter um significado, tem também a força de um ato de advertência. O que me parece bastante frutífero na observação de Collingwood é a sugestão de que, se todas as linguagens são atos, então os mesmos critérios que se aplicam à explicação de qualquer ato voluntário também se aplicam à interpretação da fala e da escrita.

Folha - O sr. tem insistido em que a história intelectual não tem nenhuma lição para nos dar e que exigir do estudo do passado a solução para nossos problemas não somente é um "erro metodológico, mas também um erro moral". O que, no seu entender, justifica o estudo do passado?

Skinner - Talvez eu tenha feito uma afirmação muito exagerada, mas o que quis foi dizer que, desde que comecei minha carreira de historiador, sempre procurei abordar o passado segundo o ponto de vista de seus participantes, ao invés de tentar abordá-lo a partir de meu próprio ponto de vista. Ora, essa é uma posição muito diferente daquela que procura estudar o passado a fim de prover a atualidade com uma lista de textos com algo a nos oferecer. Fui, então, muitas vezes acusado de transformar o estudo da teoria política num empreendimento meramente antiquário. No entanto, devo dizer que jamais supus que não houvesse um propósito moral no que fazia. Ao contrário, acho que, tentando reconstruir as teorias passadas nos seus próprios termos, nós podemos atingir uma compreensão mais rica de nossa herança intelectual e de nosso relacionamento com ela. O interesse moral do estudo do passado está, em meu entender, no reconhecimento de que muitos de nossos conceitos comuns foram anteriormente entendidos de um modo completamente diferente do nosso. É isso exatamente que constitui um desafio para nós: descobrir as razões, muitas vezes ideológicas, pelas quais algumas de nossas tradições se tornaram hegemônicas, enquanto outras foram desativadas. Este é, para mim, um modo de tentar enfrentar a difícil tarefa de ver além de nossas próprias ideologias. Sim, pois como Gramsci bem apontou, a dificuldade de nos libertarmos das ideologias hegemônicas de nossa época é uma característica de nossa condição.

Folha - Dentre os livros de sua área de interesse, quais os que mais gostaria de ter escrito?

Skinner - Se isso significa perguntar que livros gostaria de escrever se fosse mais talentoso, então diria que tenho, sim, meus heróis, meus modelos. A edição que Peter Laslett fez de Locke me parece um modelo de como deve ser feita uma edição crítica de uma grande obra de teoria política. O livro de Keith Thomas, "Religião e o Declínio da Magia", publicado em 1971, ainda me parece uma obra-prima de história. O "Machiavellian Moment", de John Pocock, foi também um livro que me influenciou diretamente. Escritores como esses fazem mais ou menos o mesmo que eu faço, mas o fazem muito melhor do que eu. Eles são mais eruditos, mais imaginativos, e eu certamente adoraria ser tão bom quanto eles.

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora, entre outros, de "The Spectator - O Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 17" (Hucitec) e "Lísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).







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