Uma escola contra a escravidão
MST, Jornalista, Jornalismo, Elite Reacionária, Preconceito, Discriminação.
Por José Arbex Jr - jornalista - Revista Caros Amigos - Edição 98 - maio/2005.
9 de abril, sábado. Eles são muitos, cerca de trezentos professores universitários (incluindo titulares, livres-docentes, doutores, pesquisadores renomados em suas áreas), psicanalistas, filósofos, economistas e educadores. Ocupam a sala principal da Escola Nacional Florestan Fernandes, criada e construída pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Guararema, a 60 quilômetros de São Paulo. A pauta é extensa: iniciar um debate com o objetivo de elaborar uma grade curricular de nível superior (graduação e pós-graduação), destinada a formar camponeses e integrantes dos mais diversos movimentos sociais. Em cinco séculos de história do Brasil, é a primeira tentativa de criação de uma universidade efetivamente popular, impulsionada pelos setores mais pobres da população e em relação de franca colaboração com a nata intelectual do país.
A sede física da escola foi construída por 1.115 sem-terra, ao longo de quatro anos e meio de trabalho oferecido por voluntários oriundos de assentamentos e acampamentos de todo o país. Sobre um terreno de 30.000 metros quadrados foram construídas instalações de tijolos de solo-cimento fabricados na própria escola. Essa técnica é agroecológica, dispensa reboco, contribui para diminuir a quantidade de ferro, aço e cimento utilizada na obra e é mais resistente e fácil de assentar. Ao todo, são três salas de aula, que comportam juntas até duzentas pessoas, um auditório e dois anfiteatros. Os recursos para a construção da escola foram obtidos com a venda do livro Terra (textos de José Saramago, músicas de Chico Buarque e fotos de Sebastião Salgado), contribuições de organizações não-governamentais (ONGs) européias e doações de amigos e amigas brasileiros e internacionais.
Como era de esperar, a inauguração da escola, em janeiro, foi motivo de escândalo e chacota por parte dos setores mais reacionários da mídia nacional, que mais uma vez se valeram de porta-vozes recentemente convertidos ao credo neoliberal. Eles devem mesmo se sentir ameaçados. Um dos pilares de sustentação da estrutura social baseada na tradicional divisão em casa-grande e senzala é precisamente o abismo que separa os intelectuais das camadas populares. O “povão” sempre foi mantido a distância dos centros produtores do saber. A elite brasileira sempre foi muito eficaz e inteligente a esse respeito. Conseguiu até a proeza de criar no país uma universidade pública (apenas em 1934, isto é, 434 anos após a chegada de Cabral) destinada a excluir os pobres. Como afirma o professor Roberto Romano, em memorável entrevista concedida a Caros Amigos, ao ser indagado sobre a existência ou não de uma universidade pública no Brasil:
“Existe o princípio da universidade pública, uma tradição anterior de universidade pública, mas paradoxalmente excludente. Aí precisamos discutir um pouco melhor o projeto da Universidade de São Paulo. Gosto sempre de lembrar que a USP tem uma origem hedionda. Gosto sempre de citar o texto do Júlio de Mesquita Filho, quando ele diz que a USP, que a universidade deve ser, no organismo social, o que o cérebro é no corpo. E que a função da universidade é estabelecer a disciplina na mentalidade popular. Mas duas páginas depois ele diz: ‘Nós temos que cuidar muito do organismo político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a determinadas regiões’ – como a nordestina etc. – ‘porque o organismo brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se desenvolveu em outro. (...) Ocorreu na sociedade brasileira um problema seriíssimo, foi incorporada à cidadania a massa impura e formidável de 2 milhões de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada’. Vou morrer com essa frase decorada. Então, está dado o programa. Está claro?”
Claríssimo. Júlio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo entre 1927 (após a morte do pai e fundador do jornal) e 1969, quando faleceu, é hoje aclamado pela historiografia oficial como intelectual impecável e impulsionador da universidade pública brasileira (empresta o nome à Universidade Estadual de São Paulo, Unesp). Como é possível associar tal imagem a um sujeito que articulou ativamente o golpe de 1964 e que odiava “a massa impura e formidável de 2 milhões de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada”? O professor Roberto Schwartz explica: são as “idéias fora de lugar”, mecanismo perverso de construção da mentalidade ideológica em um país cuja elite tem o cérebro europeu e as mãos crispadas no cabo da chibata com a qual vão golpear o dorso dos escravos (ou do zé-povinho). Para tais “intelectuais”, nunca houve qualquer contradição entre os ideais iluministas de 1789 e o estatuto da casa-grande. Ao contrário, nota Schwartz: alguns senhores de engenho chegavam a atribuir ao regime escravista o mérito de permitir aos seus filhos receberem as “luzes” na Europa.
Carlos Nelson Coutinho e outros autores já demonstraram amplamente que, no Brasil, os intelectuais que assumem uma perspectiva popular sempre encontraram dois destinos: foram cooptados (mediante o seu “apadrinhamento” e/ou a sua incorporação domesticada nas universidades e/ou órgãos de serviços públicos, e/ou sendo regiamente pagos por seus escritos, e/ou recendo bolsas e privilégios etc.), ou os poucos que resistiram foram sumariamente destruídos (presos, perseguidos, torturados, assassinados). Tal mecanismo sempre funcionou com grande eficácia, por ao menos uma razão central: apenas a existência de movimentos sociais fortes, nacionalmente organizados e estruturados poderia fornecer aos intelectuais populares a oportunidade de resistir, produzir e manter uma vida decente, sem depender dos “favores” das elites. Ora, historicamente, tais movimentos foram exterminados antes mesmo de ter tempo de construir laços mais amplos e fortes com outros setores sociais, como mostra, por exemplo, o massacre de Canudos, enaltecido por Rui Barbosa, esse expoente intelectual brasileiro.
É precisamente esse mecanismo histórico de opressão e autoritarismo que o MST hoje abala. A sua prolongada sobrevivência relativa (completou duas décadas em 2004, um feito inédito para um movimento popular de dimensão nacional), e o método de construção por ele empregado, de diálogo e interlocução com o conjunto da nação oprimida, permitiram o lançamento da escola Florestan Fernandes nos moldes inicialmente descritos, para o profundo desespero dos escribas do faraó. O MST não propõe uma relação de favores, não cobra lealdades espúrias, não impõe quaisquer condições, não ameaça, não tergiversa, não oferece propinas, não promete coisa alguma. Estabelece, ao contrário, uma relação genuína de colaboração entre a elaboração teórica e a prática transformadora. É uma oportunidade histórica muito maior do que a oferecida ao próprio Florestan Fernandes, Milton Santos, Paulo Freire e tantos outros grandes intelectuais que, apesar de tudo e contra os Mesquitas da vida, souberam se apoiar no pouquíssimo que havia de público na universidade brasileira para elaborar suas obras.
Por isso mesmo, por constituir uma possibilidade de ruptura com o legado escravista da cultura nacional, o mero lançamento da escola coloca um desafio novo para os intelectuais e militantes brasileiros efetivamente interessados na transformação social. Não basta repetir, como papagaio, que “um outro mundo é possível”, para em seguida retomar as práticas e mentalidades do “velho mundo”. Se é possível, faça. Contribua.