Por correio eletrônico de 30/04/2004 - http://carosamigos.terra.com.br/
ATRAVESSADORES DA SAÚDE
por Aracy P. S. Balbani
Os idosos usuários de planos de saúde tornaram-se a bola da vez na sinuca da migração dos antigos contratos, os quais não mais atendem à legislação federal, para os novos modelos. A boa intenção do governo - promover melhor assistência dos planos de saúde aos idosos, sem limitar o período de internação em UTI e sem custos extorsivos em comparação com as demais faixas etárias - infelizmente resultou no encarecimento das mensalidades, ou na obrigatoriedade de cumprir novos períodos de carência. De outro lado, a Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS) deseja que os planos divulguem dados sobre a mortalidade e as doenças mais freqüentes entre os segurados, indicadores da qualidade dos serviços prestados. As duas questões servem de alerta aos mais de 34 milhões de brasileiros usuários dos planos de saúde.
Sempre ouvimos falar que os pequenos produtores rurais exercem uma atividade ingrata, pois têm de adubar a terra, semear e retirar ervas daninhas da plantação. A irrigação é importante para o cultivo, porém demanda investimentos, equipamentos e mão-de-obra especializada. Mesmo assim, a colheita nem sempre está garantida, pois ainda depende do clima favorável e da aceitação do produto final pelos consumidores. No resumo da ópera, geralmente o agricultor acaba mal remunerado e, na outra ponta, muitos consumidores deixam de comprar seus produtos alegando que os hortifrutigranjeiros são caros. Isso acontece porque, no caminho entre o produtor e o consumidor, instalam-se os chamados atravessadores, indivíduos contemplados com o lucro fácil sem nunca terem posto as mãos no cabo da enxada.
Na Medicina brasileira ocorre algo semelhante. A formação dos médicos demanda um investimento contínuo de tempo e recursos financeiros. No caso dos que cursam universidade pública, esse ônus é da própria população. Com o diploma na mão, o profissional ainda tem de encontrar condições favoráveis para se estabelecer em determinada região do País. A imensa maioria do povo, empobrecida progressivamente ao longo do século 20, não tem dinheiro suficiente para pagar consultas médicas, exames, internações hospitalares nem cirurgias. O sistema público de saúde é gratuito, porém espoliado de eficiência e inteligência, e tem filas que um paciente de câncer não pode esperar. Tem aparelhos quebrados, instalações precárias, descaso e burocracia que os mortais aflitos por doenças não podem tolerar. É nesse nicho de dificuldades e descontentamento que os planos de saúde encontram terreno fértil para lançar suas raízes.
Os planos de saúde têm sido nada mais do que atravessadores entre os médicos e os consumidores que desejam uma assistência de saúde melhor do que a oferecida pelo governo. Contudo os médicos são mal remunerados e freqüentemente achincalhados pela falta de autonomia, como no embuste das "metas gerenciais", cotas que limitam o número de exames que o profissional pode pedir a seus pacientes. Já os doentes fazem contorcionismo para acomodar as mensalidades dos planos no orçamento familiar, porém comumente têm o desgosto de sofrer discriminação pelos próprios serviços contratados. Se é consulta particular, há vaga para agora. Se é de convênio, só para daqui a um mês. Mas os planos de saúde sempre lucram, afinal a doença está nos corpos dos outros.
Obviamente todos - governo, profissionais de saúde, consumidores e operadoras de planos de saúde - sabem dessa realidade perversa, mas nada de concreto é feito para mudá-la. Pouco se fez no governo durante os últimos anos para elevar o poder aquisitivo da população. Copiando o que havia sido implantado por produtores rurais, surgiram as cooperativas de trabalho médico, promessas de solução para o problema dos médicos. Entretanto é uma pena que várias cooperativas tenham sucumbido ao capital e se acomodado na posição de meras intermediárias, passando elas mesmas a explorar os médicos e a iludir os usuários com planos a preços populares, mas que não cobrem lá grande coisa e limitam o número de consultas anuais. É a falácia, o "me engana que eu gosto". Resfriado pode, pneumonia complicada com derrame pleural não pode.
Neste ano os economistas prevêem a fusão de operadoras de planos e a quebra de algumas empresas de bases mais frágeis frente à competitividade do mercado e às novas regras da ANS. Resta saber o que ocorrerá com os profissionais de saúde, clínicas e hospitais - que vendem seu trabalho às operadoras - e com os usuários, cujos organismos têm o mau hábito de apresentar sintomas independentemente das condições do mercado.
Torçamos para que os serviços proporcionados pelos planos de saúde no Brasil atualmente não sejam apenas castelos de areia, sujeitos a desmoronar.
Dra. Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista.