Ano XXVI - 22 de novembro de 2024

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ETNOGRAFIA DO ROLEZINHO


A ELITE É CONTRA O ROLEZINHO DOS SUBURBANOS

MANDELA LUTOU PELO FIM DO APARTHEID, MAS ELE CONTINUA

São Paulo, 15/01/2014 (Revisado em 20-02-2024)

Referências: Segregação Social, Preconceito e Discriminação, Escravidão e Semiescravidão dos guetos, favelas e comunidades da periferia das Metrópoles, a Ação da Extrema-Direita Oposicionista aos Governos Populares, Socialismo Participativo versus Capitalismo Excludente.

ETNOGRAFIA DO “ROLEZINHO”

SUMÁRIO:

  1. MANDELA LUTOU PELO FIM DO APARTHEID, MAS ELE CONTINUA
  2. PREPARANDO-SE PARA IR AO SHOPPING
  3. A OPINIÃO DOS LOJISTAS DOS SHOPPING CENTERS
  4. A OPINIÃO DAS MULTINACIONAIS E DOS USUÁRIOS DE SUAS MARCAS
  5. COM O DEDO NA FERIDA E ESQUIVANDO-SE DO PAPO FURADO DOS TEÓRICOS
  6. OS PUBLICITÁRIOS SÃO OS CULPADOS AO VENDEREM ILUSÕES

Manchete: O ato de ir ao shopping é político, porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega no dia a dia.

Por Rosana Pinheiro-Machado - cientista social e antropóloga. Professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de Oxford. Texto republicado por Carta Capital em 15/01/2014. Publicado originalmente em 30/12/2012. Com edição do texto original e comentários em azul por Américo G Parada Fº - Contador - Coordenador do COSIFe.

1. MANDELA LUTOU PELO FIM DO APARTHEID, MAS ELE CONTINUA

Em 2009, eu e minha colega e amiga, Lucia Scalco, começamos a estudar o fenômeno dos bondes de marca. Como? A gente reunia a rapaziada, descíamos o morro e íamos juntos dar um rolezinho pelo shopping – o lugar preferido desses jovens da periferia de Porto Alegre.

Eles nos mostravam as marcas e lojas preferidas. Contavam como faziam de tudo para adquirir esses bens (descrevemos todas as possibilidades em nossos papers). Havia um prazer e empoderamento [um sentimento de poder]  nesse ato de descer [das alturas dos guetos de pobreza] até o [luxuoso] shopping [especialmente concebido para receber somente os endinheirados].

Dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta: "pobre quer ver riqueza; quem gosta de ver pobreza é intelectual".

Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que a discriminação [segregação social] fosse tão grande que eles pudessem assustar.

2. PREPARANDO-SE PARA IR AO SHOPPING

Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno a transitar pelo shopping.

Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência.

3. A OPINIÃO DOS LOJISTAS DOS SHOPPING CENTERS

Mas, noutro canto, os donos ou gerentes das lojas se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada.

Um funcionário [de um shopping center] disse à Lucia a mais honesta frase de todas (uma honestidade que corta a alma):

Não adianta eles se vestirem com marca e virem pagar com dinheiro. Pobre só usa dinheiro vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”.

Eles, no entanto, acreditavam que eram os mais adorados e empoderados [mais significativos] clientes das lojas.

4. A OPINIÃO DAS MULTINACIONAIS E DOS USUÁRIOS DE SUAS MARCAS

Um funcionário da Nike uma vez declarou para a pesquisa:

 “Nós nos envergonhamos desse fenômeno de apropriação da nossa marca por esses marginais”.

Mas eles [os ditos marginais] nos diziam:

As marcas deveriam nos pagar para fazer propaganda, porque nós as amamos. Sem marca, você é um lixo”.

O pior é que de fato existem alguns débeis mentais que são capazes de matar para roubar um tênis Nike ou até mesmo um pacote de cigarros comprado pela elite.

Quando mostrei o Funk dos Bens Materiais [funk ostentação] em aula, uma aluna de camadas altas comentou:

 “Quando a gente vê a figura toda montada, marca estampada, já vê que é negão favelado”.

Infelizmente não me surpreendeu o fato de toda a turma ter caído na risada. Esse mesmo tipo de pessoa é aquela que ainda diz que é um absurdo comprar televisão, “pobre deveria alimentar a prole” e ponto final.

No programa Papai Noel dos Correios, que eu e Lúcia analisamos, uma menina desafiava o seu destino:

Kirido papai noel: eu me comportei, eu passei de ano, eu cuido da minha vó, meu pai sumiu de casa. Eu só quero uma calça da Adidas!”.

Mas vocês podem concluir que cartas como essas são relegadas por meio de uma moralidade escrota [reles, ordinária, baixa, ruim, sacana]: todos os pedidos de meninas e meninos de roupas de marca eram vistos como um desaforo.

Que absurdo! Afinal, pobre deve pedir material escolar e bicicleta!

5. COM O DEDO NA FERIDA E ESQUIVANDO-SE DO PAPO FURADO DOS TEÓRICOS

Tenho ficado quieta nesse caso do “rolezinho” porque este talvez seja o assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse tema é justamente o que me faz me afastar de uma certa antropologia vulgar com suas interpretações do tipo “que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e dão novos significados e agência e bla blá blá prá boi dormir”.

Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de melhor: ouvir as pessoas.

Não há uma grande diferença do “rolezinho” organizado e ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), mas vejo uma continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio:

A segregação de classes brasileiras que grita e sangra.

O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia.

Quando eu vejo aquele medo das camadas médias e superiores, lembro daquelas pessoas que se referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás disso.

Estou acompanhando os “rolezinhos” e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há um abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato.

O tema é complexo, não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento (ex-subdesenvolvidos), entre o Norte e o Sul.

6. OS PUBLICITÁRIOS SÃO OS CULPADOS AO VENDEREM ILUSÕES

E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica. Por isso, para entender a relação que as periferias globais têm com as marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e pós-colonialistas.

A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Mitchell até Newell, passando por Bhabha, Rouch e Ferguson, nos mostra uma permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta por trás desse ato.

O meu lado otimista não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SEREM VISTOS.

Meu lado pessimista tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global.

É preciso entender o “rolezinho” dentro de uma perceptiva do Sul Global [Hemisfério Sul colonizado] de séculos de violência praticada na tentativa de produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.

O pobre no shopping repete a mimeses de Bhabha. A classe média disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para a qual ela serve.

A classe média [alta] vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe média [elitista] não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso.

Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do “rolezinho” é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta.

Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar.

Próximo texto: OS DEBATES EXTREMADOS À DIREITA E À ESQUERDA ESTÃO IGNORANDO AS PESSOAS QUE PARTICIPAM DO ROLEZINHO - É HORA DE ENTENDER A PERIFERIA



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