Ano XXV - 28 de março de 2024

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CRÉDITO DE CARBONO NÃO É VALOR MOBILIÁRIO

MTVM - MANUAL DE TÍTULOS E VALORES MOBILIÁRIOS

CRÉDITO DE CARBONO NÃO É VALOR MOBILIÁRIO

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

CVM - COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Processo Administrativo CVM RJ 2009/6346

Voto do Diretor Otavio Yazbek

O presente voto se destina a apresentar, ao Colegiado da CVM, uma proposta acerca da caracterização das Reduções Certificadas de Emissão (“RCEs”) ou, como são mais comumente chamadas, os créditos de carbono. Além disso, nele se pretende identificar alguns dos efeitos de tal posição, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de aquisição dos créditos de carbono por fundos de investimento e à forma de financiamento e estruturação de projetos que levem à emissão daqueles instrumentos.

Inicialmente, deve-se esclarecer que definir a posição da autarquia acerca dos créditos de carbono não significa, em um primeiro momento, ir muito além de identificar se estes são ou não caracterizáveis como valores mobiliários, para os fins da Lei nº 6.385, de 7.12.1976 (“Lei nº 6.385/76”), e, em conseqüência, verificar se é possível aplicar a tais instrumentos os regimes decorrentes daquele diploma legal.

Tal advertência é importante porque não é raro que se veja, nos debates recentes sobre a matéria, a defesa de que tal caracterização, por si só, bastaria para sanar todas as dúvidas acerca do regime das RCEs, trazendo muito mais segurança para o nascente mercado desses instrumentos[1]. Entendo que esta seria uma posição equivocada, como adiante se verá.

O ponto de partida para a discussão que segue será não apenas o Memorando apresentado pela Superintendência de Desenvolvimento de Mercado, datado de 26.6.2009, (“Memorando”), mas também um conjunto de outras fontes que serviram de suporte para a sua elaboração, a saber: (i) as diversas manifestações da PFE, exaradas nos últimos anos em razão de casos concretos e consultas[2]; e (ii) os demais documentos que foram submetidos à análise da CVM em processos administrativos que versavam, direta ou indiretamente, sobre o tema. Todo esse material sintetiza, no meu entender, de forma bastante satisfatória, o conjunto de posições hoje defendidas no mercado. Outrossim, tendo em vista a detalhada descrição dessas posições no texto do Memorando, não pretendo apresentar, aqui, um resumo muito mais detalhado.

Ante o acima exposto e para o seu melhor entendimento, o presente voto se subdividirá em seis partes:

i) “Dos créditos de carbono” - introdução contendo uma breve síntese de alguns conceitos básicos e das finalidades do mercado de RCEs;

ii) “Da caracterização das RCEs perante a CVM” - na qual se discutirá a eventual inclusão destes instrumentos no rol de valores mobiliários contido no art. 2º da Lei nº 6.385/76;

iii) “Conveniência da caracterização das RCEs como valores mobiliários” - que trará a discussão acerca de tal perspectiva tendo em vista, inclusive, a natureza dos interesses a serem tutelados;

iv) “Possibilidade de aquisição de RCEs por fundos de investimento” - onde se reforçará o entendimento da área técnica referente à viabilidade da aquisição de créditos de carbono por tais veículos;

v) “Mecanismos de financiamento e estruturação de projetos” - que tratará de estruturas já disponíveis para o financiamento e para a estruturação de projetos de MDL e também do posicionamento da CVM quanto a outras potenciais alternativas; e

vi) “Conclusão”.

Não pretendo, aqui, dedicar maior atenção aos mecanismos ou aos mercados ditos “voluntários”, em que a emissão dos créditos de carbono decorre não do regime estabelecido no Protocolo de Quioto, mas sim de acordos entre as partes (ou entre estas e governos locais), que se obrigam a aceitar, para fins diversos, as iniciativas de redução de emissões tomadas por determinados agentes. Creio que o Memorando deles se ocupa, de forma mais do que adequada, nos seus itens 1.6 a 1.9. Mais do que isso, porém, tais mecanismos (surgidos em especial em países que não aderiram de pronto ao regime de Quioto) produzem, ainda, poucos efeitos no Brasil. De qualquer maneira, onde for aplicável a mesma lógica apresentada neste voto, creio que se imporá, também, o mesmo regime ora discutido.

I. Dos créditos de carbono

Esta primeira parte destina-se a definir, para fins eminentemente instrumentais e de suporte, o que são as RCEs. Nela ainda serão discutidas, resumidamente, as suas finalidades e a estrutura geral dos mecanismos utilizados para a sua emissão.

O Protocolo de Quioto entrou em vigor em 16.2.2005. Nos termos do documento, os países relacionados no seu Anexo I (“Países Anexo I”) - em sua maioria os chamados países desenvolvidos - comprometeram-se a reduzir, no período de 2008 a 2012, a emissão de gases do efeito estufa (“GEEs”) a determinados níveis. Já aos países em desenvolvimento, constantes do Anexo IV (“Países Não-Anexo I”), não foram impostas metas de redução. Não obstante, como a seguir se verá, estes últimos (dentre os quais se inclui o Brasil) são essenciais para a implementação do modelo ali criado.

Isso porque, tendo em vista as dificuldades para o atendimento daquelas metas de redução de emissão de GEEs estabelecidas para os Países Anexo I (e que são refletidas nas regulamentações locais, passando a vigorar para os agentes econômicos localizados em cada um daqueles países), o Protocolo de Quioto prevê a existência de determinadas possibilidades de flexibilização, dentre as quais se encontra o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (“MDL”).

Por meio do MDL, os Países Não-Anexo I - ou os agentes econômicos neles localizados - podem desenvolver projetos de redução de emissões ou de remoção de GEEs em seus territórios. Tais reduções ou remoções, uma vez certificadas conforme determinadas metodologias e procedimentos, permitem a emissão dos créditos de carbono.

As RCEs assim emitidas podem, então, ser adquiridas e utilizadas pelos Países Anexo I para o cumprimento de parte das metas para eles definidas no Protocolo de Quioto. Estes últimos não precisariam, assim, honrar de forma direta a totalidade de seus compromissos de limitação e redução de emissões, podendo “compensar” tais obrigações a partir da aquisição daqueles créditos.

Vale referir, ainda que de forma sucinta e em especial porque tal referência será relevante no corpo deste voto, as etapas do processo que leva à certificação das reduções.

Desta forma, e na linha do acima exposto, os projetos de redução de emissões ou de remoção de GEEs nos Países Não-Anexo I devem implicar reduções ou remoções de emissões adicionais àquelas que ocorreriam na ausência de sua implantação, garantindo benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo. Para tanto, em uma primeira etapa os projetos candidatos são submetidos a um processo de análise, que passa pela sua validação pelas “entidades operacionais” e culmina no seu efetivo registro pelo Conselho Executivo, órgão da ONU responsável pela supervisão do funcionamento do MDL. Concluída esta fase, inicia-se outra, de monitoramento da implantação do projeto e de cálculo das reduções ou remoções de GEEs atingidas com a atividade.

Por fim, com a verificação e a certificação da redução ou da remoção de GEEs, autoriza-se a emissão, pelo Conselho Executivo do MDL, de RCEs, as quais (depois de descontadas despesas administrativas) são creditadas escrituralmente aos participantes do projeto em um registro central (ou seja, tanto a emissão dos títulos quanto a sua manutenção, em registros centralizados, são feitas no exterior).

É dessa forma que o MDL (i) permite aos Países Anexo I (e aos agentes econômicos neles localizados), a partir da compra de RCEs, o cumprimento de parte das metas (impostas e não atingidas) de redução, ao mesmo tempo em que (ii) estimula o investimento em processos produtivos “limpos” nos Países Não-Anexo I, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável.

Mais do que isso, porém, (i) ao criar um tipo de ativo passível, inclusive, de transferência; e (ii) ao definir os universos de potenciais oferta e demanda para esse ativo, o MDL permite a criação de um verdadeiro mercado secundário para os créditos de carbono. Destas possibilidades nascem outras, com o surgimento, por exemplo, de intermediários especializados e mesmo de agentes interessados na compra daqueles ativos para fins de especulação, em um movimento bastante similar ao dos processos de inovação financeira.

De qualquer maneira, por se tratar de acordo internacional, o Protocolo de Quioto demanda determinados ajustes dos sistemas jurídicos locais quando da adesão de um determinado país: qual a natureza dos direitos que ele gera para os agentes? Em que medida estes direitos são já reconhecidos pela legislação nacional? Em que medida, por se falar em um novo título negociável, cumpre remeter ao regime do mercado de valores mobiliários? Longe de serem exclusivamente teóricas, estas questões determinam as possibilidades de desenvolvimento de um mercado de créditos de carbono em um determinado país. Na seqüência, lidar-se-á com cada uma delas.

II. Da caracterização das RCEs perante a CVM

Como acima referido, tão logo surgiu o modelo ora descrito, começaram a aparecer como conseqüência, nos diversos países aderentes ao Protocolo de Quioto, questões referentes ao status legal e regulatório do novo instrumento. Uma vez que tal modelo se apóia no desenvolvimento de um determinado instrumento financeiro, negociável em mercados secundários, é razoável que muitas das discussões passem pelo marco regulatório dos mercados financeiro e de capitais.

Na prática, a maior parte das discussões tem girado em torno da possibilidade de caracterização das RCEs como valores mobiliários, para efeitos diversos. Tal possibilidade ganha relevância quando se parte da constatação de que, em 2001, com a reforma da Lei nº 6.385/76, a definição de valor mobiliário passou não apenas a abranger outros instrumentos, anteriormente não considerados sob tal rubrica, mas também a incorporar uma nova potencialidade: ante a redação dada a alguns incisos do art. 2º daquele diploma, tornou-se possível, por interpretação, verificar se novos instrumentos poderiam ou não ser caracterizados como valores mobiliários. Rompia-se, assim, um modelo inaugurado em 1976, no qual a lista de tais instrumentos era fechada, numerus clausus.

Essa nova possibilidade se dá, em especial, a partir de três incisos do referido artigo: os incisos VII e VIII, por intermédio dos quais se passou a caracterizar os derivativos como valores mobiliários; e o inciso IX, que, replicando o que já constava da Medida Provisória nº 1.637, de 8.1.1998 (“Medida Provisória nº 1.637/98”, posteriormente convertida na Lei nº 10.198, de 14.2.2001), utiliza o conceito de contrato de investimento coletivo, aparentado do conceito norte-americano de securities. Como diversos autores referem-se, com freqüência, a ao menos uma das duas categorias (derivativos e contratos de investimento coletivo), senão a ambas, para procurar a natureza dos créditos de carbono, será brevemente discutida, na seqüência, cada uma delas.

Os créditos de carbono e os derivativos

Como acima referido, a inclusão dos derivativos no rol de valores mobiliários, por força da Lei nº 10.303. de 31.10.2001, foi um marco, ainda que não isento de críticas, para uma nova forma de se tratar a relação dos instrumentos sujeitos à competência regulatória da CVM. Já a criação da figura dos contratos de investimento coletivo, inicialmente pela Medida Provisória nº 1.637/98, sinalizara que, a partir dali, o que antes era uma lista fechada, passava a ser objeto de um exercício interpretativo. Nada mais compreensível, ante as demandas geradas pela aceleração dos processos de inovação financeira.

A inclusão dos derivativos naquele mesmo rol, já em 2001, não apenas reforçava essa tendência, como também promovia uma outra mudança - doravante a CVM passaria a responder, também, pela regulamentação dos mercados de derivativos, instrumentos negociáveis que, seja estruturalmente, seja do ponto de vista das finalidades, nada tinham a ver com os valores mobiliários mais tradicionais.

De pronto, a doutrina apontou algumas das dificuldades trazidas por esse novo alargamento[3]. Em grande parte, muitas dessas dificuldades estão relacionadas ao conteúdo da expressão “derivativo” e à lógica que determina tal conteúdo. É, em última instância, com isso que se está lidando no presente caso. Por este motivo, entendo que, para discutir a possibilidade da caracterização dos créditos de carbono como derivativos, o primeiro passo seria definir “derivativo”.

De um modo geral, não se encontram definições para tal expressão que não em manuais de finanças e, no mais das vezes, essas definições são vazadas em termos bem simples: algo na linha “derivativos são todos os instrumentos que retiram o seu valor de outras relações ou de outros instrumentos” [4].

Como se pode ver, a definição é baseada exclusivamente no processo de apreçamento dos instrumentos que se procura definir. Assim, se os ativos propriamente ditos têm seus preços definidos em razão do seu conteúdo - dos bens ou dos feixes de direitos e de deveres neles embutidos[5] -, os derivativos são apreçados a partir de outras relações.

Esta racionalidade está diretamente relacionada à finalidade original de tais instrumentos - tal finalidade é o chamado hedge, expressão que designa a proteção contra as oscilações nos preços das mercadorias, taxas ou outras variáveis às quais o agente econômico está exposto. As partes vendem ou compram determinados ativos (ou, em uma abstração que segue a mesma lógica, determinadas taxas ou índices financeiros), para liquidação em data futura, justamente porque estão expostas às oscilações dos preços daqueles ativos (ou taxas ou índices) em suas atividades cotidianas.

Neste sentido, a finalidade do derivativo não é tanto transferir o bem em si, mas sim “travar” o preço de venda (ou de compra) deste bem em uma data futura. Se, nas suas versões mais tradicionais, essas operações de proteção eram feitas com a efetiva entrega do bem e o pagamento do principal (do preço pactuado), com o passar do tempo elas foram se refinando, com o surgimento, por exemplo, da possibilidade de liquidação financeira.

Assim, o contrato pode ser liquidado não mais pela movimentação do principal, mas sim pela contraposição entre o valor originariamente pactuado entre as partes e o valor de mercado do bem na data da liquidação (um verdadeiro contrato diferencial). O que importa - o que dá o efeito de hedge - é a transferência daquela diferença. Fica claro, aqui, porque esse tipo de instrumento foi chamado de derivativo: seus resultados decorrem do efetivo comportamento do preço de um bem, o chamado “ativo subjacente”. Mais do que os resultados, a possibilidade de negociação desses instrumentos em mercado secundário também decorre das expectativas em torno de tal comportamento.

Trata-se, flagrantemente, de um fruto do processo de inovação financeira, por meio do qual uma determinada necessidade dos agentes econômicos foi embutida em um produto financeiro. Por força desse mesmo movimento, surgiram outros refinamentos. Assim, se, no início, este tipo de arranjo se fazia a partir de modalidades operacionais mais simples (do chamado contrato a termo), com o tempo foram surgindo novas modalidades, seja pela liquidação financeira, seja pela possibilidade de negociação em bolsa (nos contratos futuros), seja mesmo a partir de modelos mais complexos (como as opções e swaps, dentre outros instrumentos). Da mesma maneira, se as primeiras necessidades de hedge se apresentavam no mercado de commodities agropecuárias, passou-se, em especial a partir da década de 1970, ao hedge propriamente financeiro, envolvendo taxas de câmbio, de juros e índices de ações.

Em linhas muito gerais - e observadas as diferenças que podem surgir quando se fala de instrumentos concretos - essa é a lógica que rege o surgimento dos instrumentos derivativos, não apenas para o hedge, mas também para a especulação, que é uma outra possível finalidade para tais operações.

Ora, dizer que um determinado instrumento é um derivativo remete, então, no mínimo, àquele processo de formação de preços. Neste sentido, entendo que os créditos de carbono nada têm a ver com os derivativos. Se eles são instrumentos “resgatáveis”, no sentido de serem passíveis de transformação em um determinado tipo de vantagem econômica concreta, eles não são derivativos, mas os próprios ativos - inexiste ativo subjacente, sendo negociados os próprios ativos-objeto. Coisa distinta ocorreria se aqui se estivesse tratando de opções de crédito de carbono, por exemplo.

Desnecessário dizer que, ao contrário do que têm afirmado alguns autores, não cabe, também, falar em finalidades de hedge quando se está tratando desse tipo tão peculiar de ativo. Isso porque um agente compra créditos de carbono, como já se viu, porque a legislação ou a regulamentação competente lhe permite utilizar este tipo de ativo como meio alternativo de cumprimento de um determinado tipo de obrigação. Não é de hedge que se cuida aqui - e gostaria de deixar tal ponto realçado ante a facilidade com que tal conceito (que tem um conteúdo técnico e cuja utilização produz importantes efeitos), vem sendo adotado nos últimos tempos, muitas vezes sem maior rigor.

Entendo, desta maneira, que os créditos de carbono não são instrumentos derivativos, não se lhes podendo considerar como valores mobiliários para os fins dos incisos VII e VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76.

Afastada essa hipótese, será necessário explorar a outra alternativa que vem sendo aventada pelos autores brasileiros para a possível caracterização das RCEs como valores mobiliários: a da sua caracterização como contratos de investimento coletivo.

Os créditos de carbono e os contratos de investimento coletivo

Pode-se ainda buscar a caracterização dos créditos de carbono como valores mobiliários com base no inciso IX do citado art. 2º, ou seja, a partir do reconhecimento de uma natureza de títulos ou contratos de investimento coletivo. Como acima destacado, esta é outra daquelas categorias que, criadas a partir da década de 1990, como necessária contrapartida à dinâmica dos processos inovativos, levam a um conceito mais material de valor mobiliário.

Creio que, aqui, é interessante um esforço de equiparação, ainda que muito breve, com o movimento pelo qual a CVM acabou por caracterizar como valores mobiliários os Certificados de Potencial Adicional de Construção - os CEPACs - no Processo Administrativo CVM nº RJ 2003/499.

Naquela ocasião, e considerando as origens doutrinárias do conceito de contrato de investimento coletivo, o Diretor Relator optou por remeter ao que ficou conhecido como Howey Test (proveniente de um caso homônimo), um exercício interpretativo a partir do qual, com base nos elementos que constam da definição geralmente aceita de securities (e que estão presentes, também, no inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76), pode-se verificar se um dado instrumento será ou não colocado sob esta rubrica[6].

O mesmo tipo de exercício foi feito, guardadas algumas diferenças, em outro caso que se pode tomar como paradigmático para a discussão dos limites da atual definição de valor mobiliário - o Processo Administrativo CVM nº RJ 2007/11593, no qual se caracterizaram as Cédulas de Crédito Bancário - CCBs - quando emitidas sob determinadas condições, também como valores mobiliários.

Com base no quanto já foi decidido, verifica-se que, a rigor, no inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, se está, basicamente, tratando:

i) de instrumentos destinados ao investimento (ou seja, de inversão de recursos);

ii) em um empreendimento coletivo;

iii) com a expectativa de obtenção de lucros;

iv) que decorrem dos esforços do empreendedor ou de terceiros (nunca do próprio investidor, que é passivo em relação à produção dos resultados).

Entendo que se, no caso dos CEPACs ou das CCBs, foi possível, ante as condições concretas, caracterizar aqueles instrumentos como valores mobiliários, o mesmo não se pode fazer para os créditos de carbono.

Primeiro porque aqui se está tratando de títulos “resgatáveis” (destinados ao resgate em um determinado tipo de bem ou de direito, como acima esclarecido) e não em instrumentos geradores de um rendimento financeiro propriamente dito. No Processo CVM nº RJ 2003/499, a linha adotada pelo Diretor Relator foi distinta, adotando-se a interpretação de que a existência de um mercado secundário, em que se podem alienar com ganho os títulos, permitiria o reconhecimento do caráter lucrativo dos instrumentos. Entendo que esse caráter lucrativo deveria dizer respeito ao próprio título, estando diretamente relacionado à sua natureza de instrumento de investimento.

Em segundo lugar, e a distanciar os créditos de carbono dos CEPACs, reforçando - agora de forma marcante - o ponto acima, deve-se destacar que, uma vez emitidas, as RCEs passam a existir desvinculadas do agente que implantou o correspondente projeto de MDL, não sendo a ele oponíveis. Em outras palavras, todos os créditos de carbono emitidos acabam sendo fungíveis entre si. Não há que se falar, assim, naquelas relações “de participação, de parceria ou de remuneração”. Este ponto é bem destacado no Memorando que sustenta o presente voto[7].

O fato é que, (i) não havendo a manutenção de vínculo, em razão da aquisição de uma RCE, entre o adquirente desta e o agente econômico que implantou o projeto de MDL; e (ii) não se destinando as RCEs a corporificar um investimento propriamente financeiro, não há que se falar na caracterização dos créditos de carbono em si como valores mobiliários também por força do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76.

Outros instrumentos derivados dos créditos de carbono ou a eles relacionados

Sem prejuízo das considerações acima, creio ser necessário ressalvar que, caso sejam criados outros instrumentos envolvendo créditos de carbono ou direitos decorrentes de créditos de carbono ou de projetos de MDL, estes devem, na forma destacada no Memorando, ser objeto de análise própria, a fim de que se verifique se, a cada caso, se trata ou não de valor mobiliário.

O Memorando já antecipa algumas interpretações neste sentido. Prefiro porém, no âmbito do presente voto - e como não é da decisão de casos concretos e das autorizações propriamente ditas que se está aqui tratando -, não analisar nenhuma das modalidades operacionais ali discutidas, apenas destacando que, conforme a natureza do produto criado, ele pode, de fato, vir a ser caracterizado como valor mobiliário por qualquer dos incisos acima discutidos.

Autorizações dos sistemas prestadores de serviços e das entidades administradoras de mercados organizados

Outro ponto que merece destaque no presente voto, ainda que apenas para registro, é que a utilização de qualquer estrutura registral, de negociação ou de custódia sujeita à competência regulatória da CVM deve ser objeto de autorização pela autarquia, na forma da respectiva regulamentação. O mesmo vale, naturalmente, para a prestação de quaisquer serviços por entidades administradoras de mercado organizado, na forma do art. 13 da Instrução CVM nº 461, de 23.10.2007.

III. Conveniência da caracterização das RCEs como valores mobiliários

Por fim, e como essa questão também veio à baila no já referido voto sobre a natureza dos CEPACs e nos pareceres da PFE que vêm tratando, até o presente momento, da matéria ora discutida, creio que vale discutir a conveniência de se caracterizarem as RCEs como valores mobiliários. Se eles não são, pelos motivos acima descritos, assim enquadráveis, cumpre perguntar se não caberia, por uma iniciativa legal, obter aquela caracterização.

Ora, entendo que a caracterização de um instrumento como valor mobiliário tem, como principal efeito, a submissão dos processos de emissão, distribuição e negociação de tal instrumento à competência de um regulador estatal próprio, a CVM - vale dizer, valor mobiliário, mais do que uma categoria teórica, é tudo aquilo que a legislação define como tal, para fins de definição da competência do regulador estatal[8].

Neste sentido, a própria tipologia variada dos valores mobiliários na atualidade (uma vez que eles englobam títulos de dívida, de participação, derivativos etc), acaba por demonstrar que, em termos de definição da natureza jurídica propriamente dita, a caracterização de um instrumento como valor mobiliário é de pouca valia. Ela importa, muito mais, para a incidência de um regime regulatório próprio que, historicamente, é conformado com base na tutela do investidor, sobretudo a partir de regras de cunho informacional (em especial referentes ao full disclosure e à vedação ao insider trading), e na garantia da eficiência dos mecanismos de mercado (sobretudo a partir da proteção aos mecanismos de formação de preços dos ativos)[9].

Ora, como já foi brevemente esclarecido, créditos de carbono: (i) são emitidos como resultado de um procedimento próprio, cuja idoneidade deve ser certificada por entidades às quais foi delegada autoridade específica para tanto; e (ii) uma vez emitidos, tornam-se desvinculados da instituição que implementou o correspondente projeto de emissão, tornando-se fungíveis entre si. Ademais, vale esclarecer que tais instrumentos são ofertados de forma essencialmente privada[10].

Da combinação desses fatores resulta que, em princípio, pouco ou nenhum benefício adviria para o público investidor caso se estendesse a competência da autarquia para abranger tais títulos. Não vejo a necessidade, ao menos no que tange aos agentes que implementam projetos de MDL, dando causa à emissão de RCEs, de criação de um regime de disclosure próprio. As próprias emissões dos produtos, contando com uma série de gatekeepers (agentes credenciados para atuar na estruturação de projetos, validar e certificar iniciativas) e de procedimentos de controle, também não demandam regimes diferenciados (mesmo porque, muitas vezes tal emissão se dá no âmbito de relações intuitu personae, conformadas pelas partes em razão de características individuais).

Para outros produtos relacionados às RCEs, como já se viu, a CVM já dispõe da competência adequada, seja a partir do que lhe permitem os incisos VI e VII do art. 2º da Lei nº 6.385/76, seja a partir do que lhe permite o inciso IX do mesmo dispositivo. No que tange às RCEs propriamente ditas, porém, não vejo motivação suficiente para levar a novos esforços ou a novas iniciativas visando ao alargamento daquela competência.

IV. Possibilidade de aquisição de RCEs por fundos de investimento

Ainda que tenha sido afastada a caracterização das RCEs como valores mobiliários, é certo que estas, como ativos passíveis de negociação, também interessam à CVM, na medida em que poderão integrar a carteira de veículos de investimento diversos. Assim, trataremos aqui da possibilidade de aquisição de RCEs por fundos de investimento, notadamente aqueles regidos pela Instrução CVM nº 409, de 18.8.2004 (“Instrução CVM nº 409/04”). Sem prejuízo das considerações constantes do Memorando, com as quais concordo em sua integridade, creio que vale deixar alguns pontos registrados no presente voto.

Na Instrução CVM nº 409/04, fundos de investimento são definidos como uma comunhão de recursos destinada à aplicação em ativos financeiros. A definição do que são estes ativos financeiros, para os efeitos da referida Instrução, encontra-se no art. 2º, § 1º, da mesma regra. Tal parágrafo, em seu inciso VIII, autoriza as carteiras dos fundos de investimento a conter inclusive “warrants, contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias ou serviços para entrega ou prestação futura, títulos ou certificados representativos desses contratos e quaisquer outros créditos, títulos, contratos operacionais desde que expressamente previstos no regulamento”.

Ante a amplitude do contido no referido dispositivo, entendo que, desde que haja previsão em regulamento, podem os fundos de investimento adquirir RCEs. Porém, em consonância com o Memorando e com o decidido pela CVM no Processo Administrativo nº RJ 2008/6432, entendo, ainda, que as RCEs em si são, a rigor, ativos emitidos no exterior, o que também se deve levar em conta para a presente interpretação.

Isso porque daí decorre que, para a aquisição de RCEs por fundos de investimento, deve-se aplicar o disposto no § 5º do art. 2º da citada Instrução CVM nº 409/04. Assim, as RCEs devem: (i) ser admitidas à negociação em bolsa ou registradas em sistema de registro devidamente autorizados em seus países de origem e supervisionados por autoridade local reconhecida (inciso I); ou (ii) ter sua existência assegurada pelo custodiante do fundo (inciso II). Na hipótese do inciso II, também se aplicará o disposto no art. 2º, § 8º, da Instrução CVM nº 409/04, que estabelece que os registros a que se refere o § 5º, inciso II, devem ser mantidos em contas de depósito específicas, abertas diretamente em nome do fundo.

Note-se que, quando se estiver tratando não da aquisição de RCEs propriamente ditas, mas sim de outros tipos de instrumentos, como certificados representativos de compra e venda futura de RCE e outros derivativos ou produtos sintéticos, criados no Brasil e aqui negociados, bastará observar o disposto no § 3º do art. 2º da citada Instrução CVM nº 409/04. Isso implica dizer que os ativos deverão ser “admitidos a negociação em bolsa de valores, de mercadorias e futuros, ou registrados em sistema de registro, de custódia ou de liquidação financeira devidamente autorizado pelo Banco Central do Brasil ou pela CVM, nas suas respectivas áreas de competência”.

V. Mecanismos de financiamento e estruturação de projetos

Finalmente, o Memorando discorre sobre algumas espécies de veículos de investimento, já regulamentados pela CVM, que poderiam ser utilizados como alternativas de mercado para o financiamento de projetos de MDL. Esclareço que, a meu ver, não cabe a esta primeira manifestação do Colegiado esgotar o tema.

Mais importante é deixar registrado, nos moldes do quanto se discute no Memorando, que, hoje, o mercado brasileiro já dispõe de alguns instrumentos que permitem o financiamento daqueles projetos - de desenvolvimento de técnicas produtivas, por exemplo - destinados a gerar RCEs. Já há registro, por exemplo, da adoção de estruturas envolvendo Fundos de Investimento em Participações (FIP), regulamentados pela Instrução CVM nº 391, de 16.7.2003, para tais fins.

O Memorando explora, ainda, a possibilidade de utilização dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Não Padronizados (FIDC-NP), regulamentados pela Instrução CVM nº 444, de 8.12.2006, e dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII), regulamentados pela Instrução CVM nº 472, de 31.12.2008, no financiamento ou na estruturação de projetos daquela natureza. Para mim, tratam-se de possibilidades já adequadas para o atendimento a algumas das necessidades do mercado.

Ao mesmo tempo, porém, reconheço que, com o desenvolvimento de tal mercado e o aumento dos volumes emitidos e negociados, tendem a surgir algumas novas demandas, com o conseqüente surgimento de estruturas mais elaboradas de financiamento para aqueles projetos. Por este motivo, gostaria de deixar registrado que, em que pese o exercício já desenvolvido pela SDM e consolidado no Memorando, será muito importante que a autarquia se mantenha aberta a analisar propostas de criação de novos mecanismos de financiamento de projetos.

Assim, sou da opinião de que, se por um lado, o arcabouço normativo atual já oferece uma gama de alternativas para o financiamento de projetos, também é papel desta autarquia enfrentar os eventuais desafios regulatórios, tendo em vista o progressivo refinamento das estruturas negociais adotadas em mercado e, ademais, a manutenção da transparência de tais estruturas, sempre que se estiver tratando de mecanismos que envolvam o apelo ao público investidor.

VI. Conclusão

Ante o exposto, entendo que:

i) as RCEs não são, hoje, passíveis de caracterização como valores mobiliários, não estando, desta maneira, sujeitas ao regime estabelecido pela Lei nº 6.385/76 para tais instrumentos;

ii) não há necessidade, ante o processo de emissão de créditos de carbono e a natureza dos títulos, de buscar tal caracterização por força de legislação superveniente;

iii) outros instrumentos eventualmente relacionados às RCEs, como certificados, instrumentos sintéticos ou derivativos, poderão vir a ser caracterizados como valores mobiliários, tendo em vista a sua natureza, aplicando-se a eles, nestes casos, os regimes estabelecidos na regulamentação em vigor;

iv) em qualquer hipótese, a utilização de sistemas de prestação de serviços sujeitos a regulamentação específica pela CVM e a atuação de entidades administradoras de mercados organizados deverão ser precedidas das correspondentes autorizações;

v) os fundos de investimento são autorizados a adquirir RCEs, nos termos do art. 2º, inc. VIII, da Instrução CVM nº 409/04, observado, como se tratam de ativos emitidos no exterior, o disposto nos § 5º e 8º do mesmo dispositivo;

vi) no caso de certificados de créditos de carbono ou derivativos, a possibilidade de aquisição, pelos fundos de investimento, decorre também do disposto no inciso VIII do art. 2º da Instrução CVM nº 409/04, observado, caso se tratem de ativos ou de derivativos emitidos no Brasil, o disposto no § 3º do mesmo dispositivo; e

vii) o mercado brasileiro já dispõe de alguns mecanismos hábeis ao financiamento e estruturação de projetos destinados à emissão de créditos de carbono.

É o meu voto.

Rio de Janeiro, 7 de julho de 2009

Otavio Yazbek - Diretor

[1]Neste sentido, por exemplo, cf. a matéria publicada no jornal Valor Econômico de 13.4.2009, p. E2, sob o título “Crédito de Carbono é Valor Mobiliário, defende OAB”. Como se pode ver da referida matéria, a caracterização como valor mobiliário, longe de meramente outorgar a tais títulos um regime adequado de emissão e de negociação em mercado, baseados em fluxos de informações adequados (o que tenderia a decorrer da tal caracterização como valor mobiliário, como se discutirá adiante), funcionaria como verdadeira panacéia, a eliminar as incertezas hoje ainda existentes.

[2] Remeto, em especial, ao Memo/PFE-CVM/GJU-2/Nº197/2004, de 19.8.2004, com o correspondente despacho do Procurador-Chefe, datado de 26.8.2004; e ao Memo/PFE-CVM/GJU-2/Nº151/2008, de 11.11.2008, com o despacho da Subprocuradora-Chefe de 18.11.2008.

[3] Basta, aqui, referir Carvalhosa e Eizirik, A Nova Lei das S/A, Editora Saraiva, 2002, pp. 483 e ss., assim como Otavio Yazbek, Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais, Campus Elsevier, 2009, pp. 99 e ss.

[4] Nesta linha, cf., por exemplo, John Hull, Introdução aos Mercados Futuros e de Opções, Bolsa de Mercadorias & Futuros/Cultura, 1996, p. 13; e Iran Siqueira Lima e Alexsandro Broedel Lopes, Contabilidade e Controle de Operações com Derivativos, Pioneira, 1999, p. 13.

[5] Ou, para usar uma expressão ainda mais ampla, por serem, eles mesmos, o “bem da vida” que se está apreçando.

[6] Cf., para uma discussão mais aprofundada, as referências de Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik em seu A Nova Lei das S/A, cit., em especial pp. 488 e ss.

[7] Deve-se, aqui, considerar que, como a implantação de projetos de MDL tem se dado a partir de relações isoladas - que não são relações de massa - pode haver variações no que tange aos direitos e deveres das partes envolvidas. Entretanto, ainda que mude, de um caso para outro, o tipo de vinculação do agente que implantou o projeto, tal fato não invalida o argumento ora adotado: os títulos, uma vez emitidos, não dependem mais do projeto que lhes deu origem.

[8] Neste sentido, cf. Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A Nova Lei das S/A, cit., p. 478, e Otavio Yazbek, Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais, cit., p. 83.

[9] Para algumas dessas finalidades, cf. a análise de Júlio Ramalho Dubeux, A Comissão de Valores Mobiliários e os Principais Instrumentos Regulatórios do Mercado de Capitais Brasileiro, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006, pp. 43 e ss.

[10] E, mesmo nos casos de oferta por meio de sistemas de leilão em Bolsa (de que já há exemplos no Brasil), tal assunção permanece válida, dadas as características concretas das ofertas realizadas.



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